Skip to main content

Em 1890, o polonês naturalizado britânico Joseph Conrad subia o Rio Congo no interior da África. Em seus 32 anos de vida, nunca tinha passado por uma experiência como aquela, penetrando no coração da selva ainda pouco explorada. O capitão do navio sucumbiu a uma doença tropical e coube ao próprio Conrad conduzir a embarcação até o posto mais avançado dos colonizadores belgas. Uma enfermidade também quase tiraria sua vida nessa viagem, obrigando-o depois a retornar para a Inglaterra e encerrar seu contrato de trabalho na África bem antes do prazo determinado.

Foi uma experiência tão marcante que nove anos depois, transformado em escritor, Conrad publicaria “Heart of Darkness“, um clássico da literatura em língua inglesa. No livro, um jornalista chamado Charles Marlow acaba empurrado pelo destino a subir o mesmo Rio Congo em busca do Senhor Kurtz, um comerciante de marfim que teria enlouquecido, penetrado no coração da selva e se autoproclamado um deus para os nativos. No trajeto, Marlow vai percebendo que o horror afeta a todos, que o colonialismo é brutal e a civilização é uma farsa que descamba para a barbárie com muita facilidade.

Sua publicação na época não encontrou uma boa recepção. Os críticos consideraram o “livro inexpressivo” e “incompreensível” e o até mesmo Conrad não o considerou uma de suas melhores obras. O tempo provaria o contrário, mas começava ali uma espécie de sortilégio, uma maldição: qualquer coisa relacionada ao dito “Coração das Trevas” precisaria subir rio acima, lutar contra todas as adversidades, para se provar relevante.

“Rosebud”

Dois anos antes de lançar “Cidadão Kane” e mudar para sempre a História do Cinema, Orson Welles tentou adaptar o livro de Conrad para a tela grande. Poderia ter sido seu primeiro filme, poderia ter sido o marco que o outro foi, mas tudo deu errado.

O jovem gênio escreveu um roteiro completo para o longa-metragem em 1939 e planejava filmá-lo inteiramente em primeira pessoa, do ponto de vista de Marlow. Era uma proposta ousada para a época, mas ousadia era o nome do meio de Orson Welles. O cineasta chegou a fazer uma curta apresentação para os produtores de como seria a adaptação de “Heart of Darkness”, mas esse material é considerado perdido hoje em dia. O projeto não conseguiu o sinal verde dos estúdios, que o consideraram arriscado demais, principalmente em um momento em que Hollywood havia perdido o mercado europeu em virtude da II Guerra Mundial.

Welles acabaria se conformando em adaptar o livro para o rádio em 1945, sem sua visão cinematográfica e compactado para caber em somente 30 minutos.

“É o Vietnã!”

Em 1969, o roteirista norte-americano John Milius sentia-se rejeitado por não participar da Guerra do Vietnã, após seu alistamento ser recusado por causa de sua asma. Ele fazia parte de um grupo de amigos artistas que definiria a forma como se fariam produções em Hollywood nas décadas seguintes: Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford Coppola. Todos eles o incentivaram a escrever um roteiro sobre a guerra e Coppola chegou a pagar US$10.000 de adiantamento.

Milius viu em “Heart of Darkness”, romance que havia estudado em seus tempos de faculdade, a espinha dorsal para uma visão diferente do conflito no Sudeste Asiático. Marlow seria substituído por Mallard, um oficial do exército dos Estados Unidos enviado para subir o que seria o rio Mekong, penetrar no coração da selva e executar o Senhor Kurtz, aqui um Coronel norte-americano enlouquecido que se autoproclamou um Deus para os nativos. Sim, a jornada pelos porões da insanidade de Conrad caía como uma luva em uma guerra suja e malvista por parte da opinião pública: nascia “Apocalypse Now“.

George Lucas foi o primeiro nome cogitado para dirigir o roteiro de Millius. Antes da fama, o diretor de “THX 1138” queria utilizar soldados reais como atores e filmar no próprio Vietnã, em um momento em que a guerra ainda estava em andamento. Na sua visão, “Apocalypse Now” seria uma comédia de humor negro.

Venceu a sensatez e os estúdios se recusaram a permitir que Lucas assumisse o projeto. Ele se foi para tomar o mundo de assalto com outra guerra…

Coppola assumiu a tarefa para si.

Deveria ser um trabalho de pouco mais de 100 dias, filmado nas Filipinas, em perfeita segurança. Mergulhou em um inferno pessoal que se arrastou por 500 dias: os helicópteros militares emprestados pelo governo local eram constantemente requisitados de volta para combater insurgentes de verdade em outra parte do país; um tufão arrasou boa parte do cenário durante as filmagens; doenças tropicais atingiram vários elementos da equipe de produção; o orçamento estourou e Coppola teve que empenhar a própria casa para conseguir um empréstimo; o ator Martin Sheen, que interpretava o protagonista Mallard, lutava contra o alcoolismo e sofreu um infarto no meio das filmagens; o ator Dennis Hopper vivia em estado de constante consumo de cocaína, foi filmado alucinado e nunca tomava banho; uma parcela significativa da equipe também vivia em constante estado de consumo de drogas variadas, com festas e hotéis quebrados e chegou a comprar cadáveres legítimos para usar em algumas cenas até serem flagrados pela polícia; Marlon Brando, o temível Coronel Kurtz, estava muito acima do peso, teve que ser filmado nas sombras e se recusava a decorar suas falas.

Coppola sofreu um colapso nervoso e cogitou suicídio.

Mas aquele barco iria subir o rio, de um jeito ou de outro e, contrariando todas as expectativas, “Apocalypse Now” ficou pronto.

Não por acaso, em uma entrevista sobre o filme em sua primeira exibição durante o Festival de Cannes de 1979, Coppola afirmou: “Meu filme não é sobre o Vietnã. Meu filme é o Vietnã”. E não por acaso, ele saiu do Festival sob aplausos e carregando a Palma de Ouro.

Recessão Now

Os fundadores da desenvolvedora Killspace queriam percorrer aquele mesmo Mekong, subir nos ombros de Coppola e sua obra e transformar o Vietnã em um jogo. Não estavam preparados para o preço que o coração das trevas cobra e a insanidade que o acompanha.

Fundada em 2009 por dois veteranos da indústria, Montgomery Markland e Larry Liberty, a Killspace já estava consumida pela loucura desde o começo. Seu plano era erguer um império de transmídia na selva de pedra dos jogos eletrônicos se proclamarem deuses, com títulos que se expandiriam simultaneamente por filmes, quadrinhos e jogos. Em seus três anos de delírios, desenvolveram um único jogo, o esquecido remake de Yar’s Revenge para a Atari, nenhum filme, nenhum quadrinho, gastaram uma quantidade incalculável de dinheiro e acumularam desafetos.

O site The Verge entrevistou ex-funcionários da finada Killspace na condição de anonimato e todos foram unânimes em afirmar que o projeto não tinha futuro. Um deles chegou a dizer que a desenvolvedora era o “a pior comandada empresa que você poderia imaginar”.

Ainda que tivesse contratos pequenos com a Atari e com a Ubisoft (que depois foi cancelado), a Killspace desenvolvia diversos projetos que poderiam ser apresentados para outras empresas, em um frenesi de crescimento impróprio para uma empresa daquele porte. Recursos financeiros e de pessoal eram direcionados para essas apostas. Profissionais eram contratados para trabalhar em jogos que ainda não tinham sido aprovados. Um deles era de uma adaptação direta de “Apocalypse Now”.

Graças a contatos com a produtora American Zoetrope de Coppola, aquele jogo seria a embarcação que os conduziria para seu reino de glórias. Um protótipo não jogável chegou a ser desenvolvido. Mas, então, veio o baque.

A Atari faliu. A Ubisoft cancelou o desenvolvimento de Rocksmith com a Killspace, para desenvolver o jogo internamente. Era a Recessão, que ainda causaria a morte da THQ, que estaria prestes a fechar um contrato. As dívidas na pequena desenvolvedora que sonhou alto se acumularam, funcionários não eram pagos, empréstimos eram feitos, teve gente que foi demitida e a rescisão foi negociada com equipamentos da própria empresa.

Para os ex-funcionários, a Recessão não era a real causa dos problemas dentro da Killspace: era Markland, o CEO, o Kurtz desse capítulo. Segundo a descrição de muitos deles, ele era intempestivo, inacessível e megalomaníaco. Os desenvolvedores sabiam que os projetos que ele planejava estavam fadados ao fracasso, sem dinheiro. Markland respondia a eles que se os projetos não fossem feitos, não teriam o que mostrar para as produtoras, que o dinheiro viria mais cedo ou mais tarde. O CEO acabaria sendo afastado do cargo, chegando a ser barrado na porta da empresa em duas ocasiões, segundo os depoimentos coletados.

Markland nega as acusações. Afirma que sempre se importou com os funcionários, que ele e Liberty assumiram empréstimos, inclusive hipotecando a casa desse último, repetindo a saga de Coppola, para manter a Killspace operando.

Mas aquele barco nunca jogou o seu destino e a desenvolvedora fechou as portas, enquanto Apocalypse Now, Markland e Liberty, permaneceriam escondidos no coração das trevas por quatro longos anos. Esperando…

Subindo o Rio?

… até Janeiro deste ano, quando Markland e Liberty se juntaram com o escritor Rob Auten (das séries Gears of War e Far Cry), Josh Sawyer (lenda viva dos CRPGs, responsável, entre outros, por Fallout: New Vegas) e a produtora American Zoetrope para anunciarem Apocalypse Now – The Game. O próprio Francis Ford Coppola deu sua bênção sobre o projeto: “eu venho assistindo o crescimento dos jogos eletrônicos em uma forma significativa de se contar histórias e estou ansioso para explorar as possibilidades para Apocalypse Now em uma nova plataforma e uma nova geração”.

Para fugir dos contratos com as produtoras, que supostamente não aprovariam a proposta, a recém-formada desenvolvedora Erebus optou pelo financiamento coletivo. Com pompa e circunstância levantaram uma campanha no Kickstarter.

Entretanto nada vem fácil para aqueles que se embrenham nessa selva e a campanha foi cancelada bem abaixo da meta pretendida. Seus idealizadores pretendem captar recursos diretamente através do seu site oficial agora. O contador na página marca US$817.920 arrecadados de uma meta de US$4.900.000 e um prazo de três anos para a conclusão do jogo.

O novo capítulo daquilo que começou lá no século XIX no interior do Congo está sendo escrito agora, pela Erebus, no frescor do ar condicionado e da água engarrafada com gás. Ainda assim, como Conrad provou, basta pouca coisa para a casca de civilidade e normalidade desmanchar-se em loucura e horror. Apocalypse Now – The Game tem um prazo irreal, mesmo em uma indústria conhecida por atrasos e imprevistos. Tem uma cifra irreal para um projeto de três anos e deste vulto. Terminará com alguém surtando ou com alguém hipotecando a casa, talvez uma obra prima, talvez cancelado. Markland não liga para as incertezas e almeja a vaga de Kurtz nesse coração das trevas: “nós iremos criar um jogo que desafia o que uma experiência interativa pode ser, assim como o filme original desafiou o conceito de cinema”.

Erebus é o nome do barco que levou Mallard rio acima no filme de 1979. Mas ninguém sabe onde ele irá levar agora.