Skip to main content

Preservar a memória dos jogos eletrônicos é uma tarefa inglória e, até o momento, pouco incentivada (para não dizer o contrário). Servidores de jogos online são desligados, códigos-fonte são apagados e até mesmo os hardwares fundamentais para que estes registros culturais funcionem se tornam obsoletos ou insubstituíveis.

Felizmente, existe a emulação. E o mundo do crime.

Na ausência de iniciativas sólidas e legais da própria indústria dos jogos eletrônicos ou de entidades governamentais, essa preservação vem sendo feita quase que por vigilantes digitais que desafiam legislações, advogados e processos. Um limite questionável foi rompido no mês passado: alguém pode ter “furtado” uma ROM raríssima para compartilhar com a comunidade.

Imagine um quadro preciosíssimo de Van Gogh, que esteja nas mãos de um colecionador. Não existem fotos desse quadro e o colecionador permitiu que apenas um punhado de entusiastas tivessem acesso à obra, sem fotos. Mas agora, alguém invadiu sua mansão, tirou uma foto perfeita em altíssima resolução e soltou o PDF na internet para que qualquer um imprima e coloque na parede.

Guardados os limites da metáfora, foi isso o que aconteceu com o jogo Akka Arrh.

O Graal perdido

O jogo deveria ter sido lançado em 1982, com o nome de Target Outpost e era uma variação mais complexa de Missile Command. O título estava sendo desenvolvido por Dave Ralston e Mike Hally. A dupla é famosa por ter criado vários clássicos do fliperama, como Paperboy, The Empire Strikes Back e Indiana Jones and the Temple of Doom. Apesar do currículo, Target Outpost não emplacou com a Atari: após um modesto período de testes em algumas máquinas, o lançamento foi cancelado com o jogo pronto.

Começava ali a saga do raríssimo Akka Arrh, ou “Also KKnown As Another RRalston Hally” (“Também Conhecido como Outro Ralston Hally”, traduzindo do acrônimo deturpado original), em homenagem aos seus criadores.

As pouquíssimas máquinas de teste foram recolhidas e estavam apodrecendo em galpões da falida Atari. Os gabinetes que restaram foram encontrados, negociados e vendidos a peso de ouro para colecionadores. Atualmente, acredita-se que apenas três máquinas de Akka Arrh existam no mundo e apenas duas delas tem endereços conhecidos. Nenhum desses colecionadores jamais compartilhou a ROM do jogo, embora as máquinas já tenham sido testadas em convenções abertas para o público.

Obter a ROM dessa joia rara era um sonho da comunidade do MAME e um potencial pesadelo para seus proprietários, que poderiam ver diminuir o valor de suas coleções.

Trinta e sete anos depois de sua criação, Target Outpost, para sempre rebatizado como Akka Arrh, foi mesmo lançado. A pergunta que ronda os bastidores da emulação é: por quem?

Golpe de mestre

Segundo o The Dumping Union, coletivo voluntário responsável pela publicação do jogo no banco de dados do MAME, trata-se de uma doação anônima.

Entretanto, de acordo com uma postagem que pode ter sido assinada por Scott Evans, um dos donos de um gabinete de Akka Arrh, foi um furto. Um falso técnico, contratado para consertar outras máquinas, teria se infiltrado no local e copiado a ROM do jogo. A vítima estaria analisando meses de vídeos de segurança para identificar o ladrão.

Evans é conhecido no mundo da emulação como um colecionador sentado em uma pilha de raridades que nunca foram emuladas. Ele teria motivos de sobra para se sentir incomodado com esse tipo de “assalto”, apesar de também ser um doador formal de informações e até máquinas para museus e projetos de preservação da história dos jogos eletrônicos.

O colecionador não nega nem confirma a história, mas uma fonte consultada pelos jornalistas do Ars Technica garante que o caso é verídico. A fonte é outro colecionador de alto calibre que confirmou que a vítima está furiosa pelo vazamento da ROM.

Contudo, existe também a possibilidade de que a história do técnico disfarçado seja um engodo para encobrir o compartilhamento voluntário da ROM de Akka Arrh. Esse “vazamento” poderia ter partido de um dos três proprietários atuais dos gabinetes ou de um proprietário anterior que teria feito a gravação. Afinal, gravar a ROM de um jogo a partir do chip original exige tempo e equipamento que um golpista infiltrado poderia não dispor.

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica

É nesse ponto que a metáfora lá do início desmorona. Em seu seminal artigo, Walter Benjamin já questionava em 1955 as transformações que estavam em andamento na relação entre o público e a obra de arte. Se antes um Van Gogh podia ser apreciado tão somente por aqueles que tinham acesso físico ao quadro, com a fotografia e a xerografia, barreiras ancestrais são quebradas.

Ainda assim, não restam dúvidas sobre o valor intrínseco do quadro palpável, pintado pelo próprio Van Gogh. Aí estão os leilões de arte que não nos deixam mentir, décadas depois de Benjamim.

Em contrapartida, a relação com os jogos eletrônicos também não deixa dúvidas. A cópia digital de Akka Arrh é Akka Arrh, sem tirar nem por e sem a perda material do proprietário. As definições de furto precisam ser atualizadas diante desse novo mundo digital.

Desta forma, há quem acredite que essa história irá desvalorizar o acervo legítimo dos proprietários, obtido com esforço, garimpado até. Essa realidade poderia desestimular futuros colecionadores de revelar seus tesouros para o público ou mesmo de seguir investindo em novas aquisições, condenando jogos ao esquecimento.

Porém, há também quem acredite que o vazamento aumente o interesse no jogo, o que levaria a uma valorização das máquinas existentes. Afinal, jogar Akka Arrh no gabinete original é, evocando Benjamin, uma experiência intransferível que não pode ser reproduzida em uma tela LED de um PC moderno.

Nesse terreno cinzento da emulação, em que usuários, empresas, detentores de direitos autorais e colecionadores brigam entre si e todos tem razão, a popularização do jogo perdido do Atari reabre velhas feridas e a necessidade de preservar o passado de todo um segmento da cultura contemporânea.