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“É o Stan Lee!”, gritava meu filho de excitação a cada vez que encontrávamos o simpático velhinho em um jogo Lego da Marvel. Sempre envolvido nas mais inusitadas situações, era um imenso prazer ajudá-lo a sair dos apuros ou desbloquear seu personagem e passear no vasto quintal onde suas criações habitavam de uma forma quase palpável. “É o Stan Lee!” também se tornou uma frase comum para quem acompanha os filmes da Marvel nos cinemas, em momentos não menos divertidos.

“É o Stan Lee!” é uma frase que infelizmente não ouviremos mais em um lugar: no mundo real. Stanley Martin Lieber, ou Stan Lee, como se tornaria eternamente conhecido, deixou essa esfera terrestre aos 95 anos em uma segunda-feira triste de novembro.

O editor, escritor e criador foi responsável por uma revolução no universo das histórias em quadrinhos ao trazer os super-heróis para mais perto de nossas vidas com problemas mundanos, defeitos, mas sempre grandes responsabilidades. Sozinho, às vezes, mas geralmente muito bem acompanhado pelos talentos de Kirby, Ditko e outros, ele forjou uma legião de lendas: Homem-Aranha, Homem de Ferro, X-Men, Doutor Estranho, Quarteto Fantástico, Thor, Hulk e diversos mais. Ele pegou a quase obscura Atlas Comics e a transformou em uma maravilha, em uma Marvel.

Enfrentou a Distinta Concorrência, a censura, às vezes a própria opinião pública para defender aquilo que acreditava: a força dos quadrinhos, a força do entretenimento. Sendo assim, é claro que Stan Lee tinha que marcar presença também nos jogos eletrônicos. Em outra época, em outras circunstâncias, tudo poderia ter sido muito diferente, como ele afirmou em 2009, em entrevista para o jornal The Guardian:

[miptheme_quote author=”Stan Lee” style=”text-center”]Se eu fosse jovem agora e quisesse fazer histórias, gostaria muito de entrar no negócio dos jogos eletrônicos porque é o mais emocionante. Videogames e filmes são as formas mais emocionantes de entretenimento. Mas um videogame de certa forma é mais imaginativo, tem mais variedade. Em um filme você fica no enredo, em um videogame você vai em um milhão de direções diferentes. Eu não tenho ideia de como eles podem fazer isso. É como um milagre[/miptheme_quote]

Herói de bits

Se o destino colocou Stan Lee atrás de uma máquina de escrever e no comando de uma editora, isso não o manteve afastado dos jogos eletrônicos em definitiva. Sua estreia na indústria aconteceu pela dublagem, quando assumiu a voz do narrador em Spider-Man, lançado para Nintendo 64, PlayStation, Game Boy Color e Dreamcast em 2000. Ele repetiria o papel na continuação que sairia no ano seguinte, Spider-Man 2: Enter Electro, exclusivo do PlayStation.

Seriam necessários mais nove anos para que Stan Lee fosse finalmente digitalizado e fizesse uma aparição como um senador em Marvel Ultimate Alliance 2.  O criador de tantos heróis presentes no jogo elogiou o trabalho da Activision: “com toda honestidade, não estou envolvido com o desenvolvimento. A Activision merece 100% do crédito. Mas quando o jogo ficou pronto eles mostraram para mim e fiquei tão impressionado que disse a eles que da próxima vez que eles tivessem uma dessas convenções, seria melhor me terem por lá para que eu possa falar sobre isso”.

Daí pra frente ele tomou gosto. Stan Lee apareceria em todas as plataformas possíveis, seja em The Amazing Spider-Man (com superpoderes de aranha!), em The Amazing Spider-Man 2 ou em todos os jogos Lego baseados em personagens da Marvel, com poderes e habilidades cada vez maiores a cada título. Era tão prazeroso para ele quanto era para nós, como ele admitiu em uma entrevista para a Fortune, em 2015: “estou animado com isso. Quer dizer, estou emocionado. Anos atrás, eu nunca pensei que as pessoas fariam figuras de mim em versões diferentes, muito menos em videogames”.

Quem acompanhou a história de Marvel’s Spider-Man viu a última aparição de Stan Lee em um jogo eletrônico, com ele ainda vivo. É uma cena rápida, mas imperdível e, como sempre, marcante, um gesto de carinho da Insomniac Games para o criador do herói aracnídeo. Nos resta esperar agora que a tradição não se perca e a face gentil e simpática continue viva, em bits e lembranças e que a frase “é o Stan Lee” não silencie.

Herói fora da tela

Sua convicção plena de que o entretenimento tinha um papel na sociedade e que os jogos eletrônicos eram importantes não se resumiu a participações especiais. Em 2010, durante um dos períodos mais sombrios para a indústria nos Estados Unidos, ele levantou a voz. Quando havia uma ameaça real de censura sobre jogos considerados violentos e sua comercialização, Stan Lee se colocou ao lado dos jogos. O governo do estado da Califórnia, liderado pelo então governador Arnold Schwarzenegger, encarava a Entertainment Software Association nos tribunais e o resultado poderia mudar o destino de todo um segmento do entretenimento. E Stan Lee estava lá.

O homem que havia sobrevivido à perseguição anti-quadrinhos dos anos 50 e conviveu com o “selo de aprovação” nas capas de suas revistas por anos, publicou uma carta aberta contra a proposta de banimento e a favor do movimento ativista  Video Game Voters Network. É um registro histórico, que segue abaixo, na íntegra:

Prezada Video Game Voters Network,

Escrevo para incentivar os jogadores de todo o mundo a tomarem uma posição e defenderem tanto a Primeira Emenda como os direitos dos artistas de jogos de computador e de videojogos ao aderirem à VGVN (Video Game Voters Network). Minha memória sempre foi ruim e não está melhorando com a idade. Mas é boa o suficiente para lembrar uma época em que o governo estava tentando fazer com gibis o que alguns políticos querem fazer com videogames: censurá-los e proibir suas vendas. Foi uma má ideia há meio século e é uma ideia igualmente má agora. E você pode fazer algo sobre isso.

Eu criei o Homem-Aranha, o Homem de Ferro e o Hulk, os ancestrais virtuais dos personagens nos jogos de hoje. Na década de 1950, houve uma histeria nacional sobre o chamado “efeito perigoso” que as revistas em quadrinhos estavam tendo sobre a juventude de nossa nação.

Dizia-se que as revistas em quadrinhos contribuíam para a “delinquência juvenil”. Um subcomitê do Senado investigou e decidiu que os EUA não podiam “arcar com o risco calculado de alimentar seus filhos, através de revistas em quadrinhos, uma dieta concentrada de crime, horror e violência”. As revistas em quadrinhos foram queimadas. O Estado de Washington tornou crime vender gibis sem licença. E Los Angeles aprovou uma lei que dizia que era crime vender “quadrinhos do crime”. Olhando para trás, o clamor foi – perdoe a expressão – cômico.

Quanto mais as coisas mudam, como dizem, mais elas permanecem as mesmas. Substitua videogames por histórias em quadrinhos e você terá uma repetição no século 21 sobre a loucura dos anos 50. Estados aprovaram leis que restringem a venda de videogames e no final deste ano a Suprema Corte vai ouvir um caso sobre uma dessas leis, esta passou na Califórnia. Por que isso importa? Porque se você restringir as vendas de videogames, estará desmembrando nossos direitos da Primeira Emenda à liberdade de expressão e abrindo as portas para restrições sobre livros e filmes.

A Suprema Corte deve considerar a lei inconstitucional, como os tribunais inferiores têm. Mas os políticos continuarão procurando maneiras de restringir os direitos dos jogadores e dos artistas de videogames e computadores, porque isso gera boas manchetes para dizer que estão “protegendo as crianças”, mesmo que não estejam fazendo isso. Eles o fazem apesar do fato de que o setor já tem um notável sistema de classificação e todos os novos consoles têm controle dos pais – ambos ajudam a garantir que os pais controlem o que suas crianças jogam. Mas você pode ajudar a lutar contra os políticos.

O VGVN foi criado para que os jogadores expressem seus pontos de vista e digam aos líderes políticos que é tão ridículo se preocupar com videogames hoje quanto se preocupar com histórias em quadrinhos. Longe de ser perigoso, os videogames são cada vez mais poderosos contribuintes para o entretenimento, a economia, a educação e a sociedade de nossa nação.

Ao unir-se ao VGVN, você estará dizendo aos nossos líderes políticos que você se importa bastante com os jogos que você joga para usar sua voz e seu voto para ajudar aqueles que reconhecem as realidades e benefícios dos jogos e punir aqueles que tentam restringir seu acesso aos jogos e seus direitos. Por favor, junte-se e participe. Vai ser bom para a sua constituição.

Obrigado.

Stan Lee

Em junho de 2011, por sete votos a dois, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional a proposta de lei do Estado da Califórnia: “o Ato não é compatível com a Primeira Emenda. Jogos eletrônicos estão qualificados para a proteção da Primeira Emenda. Como livros protegidos, peças, e filmes, eles comunicam idéias através de dispositivos literários familiares e características exclusivas ao seu meio”.

Stan Lee estava certo. Excelsior!

Stan Lee: 1922 – Eternamente