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Até onde você iria por amor? Qual o limite para as ações quando se ama? James Sunderland é um homem atormentado pela perda de sua mulher, Mary, por uma doença terminal que tornou seus últimos dias insuportavelmente dolorosos. Tempos depois, James recebe uma carta de sua esposa Mary, dizendo que a mesma deseja encontrá-lo novamente em seu lugar especial, na cidade turística de Silent Hill. Essa é a premissa daquele que é considerado um dos maiores títulos do gênero de terror, Silent Hill 2, o jogo que conta muitas histórias em um caminho de redenção e horrores.

Essa foi a primeira grande experiência da Team Silent, trazendo uma história separada do culto que comanda a cidade de Silent Hill, das garotas Alessa e Cheryl, a garota Heather ou os deuses vermelho e amarelo. Como o final Rebirth foi adicionado na versão do corte do diretor, não iremos o levar em conta, tratando a obra de Silent Hill 2 em sua essência original, ou seja, a cidade como uma entidade em si capaz de utilizar a energia de Alessa, mas compartilhando da bondade de Cheryl, dando a seus visitantes a chance de redenção que as garotas tiveram.

We’ll meet again, don’t know where, don’t know when…

A mente é a mais cruel das prisões

Silent Hill 2 foi uma grande revolução nos jogos de terror de sua época. Seguindo o sucesso do primeiro título, a esquipe da Team Silent selecionou seus melhores profissionais e criou o mais marcante jogo de terror da época e o mais icônico da série toda. Trazendo personagens e criaturas memoráveis e uma trama relativamente simples em relação aos outros jogos da franquia, a história de James Sunderland foi o primeiro passo para a criação de um gênero de redenção nos jogos de terror, um verdadeiro oásis, após o deserto.

Silent Hill 2 expande suas inspirações para livros e filmes e a questão do estudo do psicológico humano, tratando do ego, superego e id humano. Seja no espaço, no consciente do homem ou no libido incontrolável da humanidade, Silent Hill 2 é um  tufão de ideias. O universo de Silent Hill 2 é responsável também por ampliar o lore da série de maneira não intencional, introduzindo dois dos personagens que seria conhecidos no futuro como “O Deus vermelho”, porém este assunto será discutido em outro texto.

O grande pontapé inicial e fundação base do jogo é o livro Crime e Punição, escrito por Fiódor Dostoiévski, o livro que traz a história de um homem que comete um assassinato em nome de uma “justa causa” e os acontecimentos que envolvem o caso. Na história, o protagonista Raskólnikov se vê preso a constantes dramas psicológicos após o assassinato de uma velha agiota e sua irmã Lavizieta, pois pretendia usufruir do dinheiro e jóias da vítima após seu assassinato. A culpa foi tanta que Raskólnikov se desfez do pequeno tesouro e iniciou uma espiral decadente até conseguir encontrar a redenção ao se entregar para a policia e passar oito anos em uma prisão na Sibéria.

Silent Hill 2 é extremamente voltado a psique humana e suas sutis intenções.

Seguindo a cadeia de pensamentos ditadas por Raskólnikov durante o romance, podemos ver a sutil inclinação para o jogo. Em Silent Hill 2, James comete o assassinato de sua esposa Mary. Ver a mesma em um estado debilitado, sua saúde precária e corpo tomado pela doença fez o marido tomar esta decisão. Mas será que foi isto mesmo? Pois no jogo, existem diversas interpretações para o caso de James, porém vejamos pelo angulo mais lógico da situação em si, tanto na relação de James e Mary, quanto nos acontecimentos da história de Silent Hill 2.

Quando nos apaixonamos por alguém, o mundo se torna mais colorido e tudo se torna melhor, a comida se torna melhor, os momentos bons parecem infindáveis e aquilo é algo que parece ser eterno. Mas, na realidade, quando começamos uma relação com alguém que amamos, não pensamos nas dificuldades que virão pelo caminho e, exatamente por isso, o cérebro de James escolheu trancar a memória sobre o ocorrido e pintar uma nova realidade dos fatos, em que Mary havia morrido em um hospital anos atrás. Um homem que amou tanto sua esposa que, para não ter de ver a mesma sofrer, a sufocou até a morte com um travesseiro.

Entretanto, se repararmos nas ações de James durante a história, em relação a itens, personagens e criaturas, podemos reparar que talvez ele não tenha feito isso apenas por amor. Maria é uma personagem constante e de extrema importância para o entendimento da história deste homem que mata sua mulher e tem alucinações com a mesma, a “vendo” morrer repetidas vezes.

Preso neste lugar, longe de uma saída ou de uma luz no fim do túnel, vemos James interagindo com outras pessoas, cada qual experimentando uma realidade diferente nesta “prisão”, ou seja nos aproximamos de outra referência: Solaris.

Seria Silent Hill realmente um inferno na Terra, ou um purgatório disfarçado?

Escrito em 1961 por Stanislaw Lem, Solaris é uma obra de ficção cientifica chave para a história de Silent Hill 2, contando com três adaptações cinematográficas. O jogo tomou muito do visual da adaptação russa da obra, com um ar fantasmagórico e parecendo sair de um sonho febril. Na obra somos apresentados a uma realidade em que os humanos fazem contato com uma forma de vida inteligente, esta sendo o oceano do planeta nomeado Solaris. A fim de se comunicar com o planeta, é montada uma estação em sua órbita. Isso se revela uma péssima escolha.

O planeta por si só não é uma ameaça mas, na tentativa de comunicação, o planeta é atingido por uma forte rajada radioativa e, a partir deste momento, tudo se torna elusivo. O protagonista Dr. Kris Kelvin é enviado a estação e, chegando lá, descobre que o capitão cometeu suicídio pouco antes da chegada do psicologo e amigo. Agora, Kris tem de conviver com os dois últimos sobreviventes da estação, que também parecem ter perdidos suas mentes, cada um experienciando um contato diferente com a energia vinda do planeta.

Kris logo descobre os poderes telepáticos do planeta, ao se deparar com sua antiga mulher Hari, que se suicidara 10 anos antes. Com isso podemos ver que Kris e James (em Silent Hill 2) são visitados por versões alternativas de suas antigas parceiras e que cada pessoa tem contato com uma realidade diferente. Kris vê sua mulher morrendo repetidas vezes durante a obra enquanto está a bordo da estação espacial e James vê Maria ser morta diversas vezes na cidade e até mesmo se sentindo fraca ou doente.

Na cena em que falamos com ela enquanto ela está por trás de uma cela, vemos que, na realidade, quem está preso é James e não Maria.

Tempo, lógica, realidade, são conceitos que devem ser jogados pela janela para se aproveitar a obra.

As obras conversam ao mostrarem locais que atraem suas vitimas/hospedeiros, ao projetar visões pervertidas e deformadas de seus pecados, enquanto entalham uma perfeita réplica de seus maiores medos ou erros, os levando à insanidade. Exatamente como Eddie e Angela em Silent Hill 2, os outros cientistas em Solaris agem de maneira críptica e enigmática. Eddie é atormentado pelo fato de ter matado o cão do colega que o humilhava e o deixando manco após atirar em seu joelho. Já Angela se ressente ter matado o pai, mesmo após os anos sendo abusada por ele, física e sexualmente. Com isso, ela entra em uma espiral de auto-depreciação e depressão, o que ocorre com muitas vitimas de abusos. Agora, com o pai morto, ela jamais poderá esperar que o mesmo se arrependa do que fez, algo que poderia ajudá-la a se recuperar.

Tais temas profundamente filosóficos são mostrados diretamente durante o jogo, em que, em “Born from a Wish” (capitulo especial no qual jogamos com Maria), vemos uma cena semelhante a quando Hari vê seu reflexo em Solaris. Ambas as mulheres parecem entender que não são  “elas” mesmas e sim um tipo de construto abstrato, não conseguindo se lembrar de seu passado ou de qualquer outra coisa, exceto daquele curto período de existência. A maior prova de que Maria não existe realmente é que na boate do jogo, onde ela supostamente trabalha, há realmente o poster de uma mulher chamada Maria, porém completamente diferente da Maria que conhecemos durante o jogo. Ou seja, Maria é apenas a representação e fusão de Mary e a dançarina Maria, que James viu anos atrás quando visitou a cidade com sua mulher.

Solaris é uma das grandes obras que inspiraram o universo de Silent Hill e tocaram profundamente no seu aspecto psicológico, forçando o jogador a confrontar o passado e o psicológico do protagonista pela primeira vez na série. E o jogo faz isso de maneira sutil e subtendida, sem avisar que possui diversos finais, que a narrativa pode se alterar de acordo com as ações dos jogadores e que é possível desencadear diferentes eventos. Tudo isso faz com que o jogador seja pego com a guarda baixa, afinal de contas, pensamos de maneira diferente quando observados ou quando temos conhecimento de que nossas ações estão sendo testadas.

Olhe pelo lado bom James, até as paredes podem ser travesseiros em uma sala acolchoada.

Um degrau de cada vez, pra sair de Silent Hill 2

Por este motivo, o jogo pode ser considerado um sucesso no que pretende alcançar como obra. Ele consegue fazer com que o jogador sinta o que James sente e escolha de acordo com suas ações durante a história. Diversos elementos fazem a diferença na narrativa final, incluindo quantas vezes ele olha a carta de Mary ou sua foto, se repara que as letras da cartas estão sumindo com o passar do tempo ou se ele apenas liga para Maria e seu bem estar, algo que a cidade deseja. A obra bombardeia os jogadores com mensagens subliminares sobre os sentimentos e angústias de James em relação a sua vida com Mary.

Cada criatura em Silent Hill 2 tem um significado. O inimigo Lying Figure é uma representação abstrata do estado terminal de Mary, tendo em vista que a criatura está restringida por uma camisa de força feita da própria carne e possui pernas femininas e perturbadores sapatos femininos. O inimigo Mannequim representa a frustração sexual de James diante de sua esposa, incapaz de o satisfazer, tendo em vista seu estado. Até mesmo o inimigo Abstract Daddy, que é morto por Angela, em uma primeira observação pode parecer apenas uma porta mas, se repararmos bem, são duas criaturas, presas no ato sexual, tendo um homem, e o que parece ser o corpo de uma garota/mulher sob o mesmo.

Claro que muitos podem dizer que Piramid Head representa a frustração sexual de James, porém irei abordar a criatura em um segundo segmento de artigos, em que poderei entrar em mais detalhes nas inspirações e bases de diversos monstros. Mas o mesmo pode ser posto como um guia ou guardião de James, sua versão naquele mundo distorcido, uma criatura que leva salvação através da punição do protagonista. Levando a pesada espada, um simbolo fálico que representa os desejos primários de James, e o pesado elmo que esconde sua verdadeira identidade, igual a James teve de fazer para não ter de lidar com o assassinato de Mary. Por isto é tão ridícula a ideia de ver o mesmo em outras obras e nos filmes.

James é um homem guiado por luxuria e egoismo, mas sua redenção há de chegar.

A série Twin Peaks é fortemente relacionada ao mundo de Silent Hill, tendo em vista que ambas as ideias tratam de cidades acometidas por bizarros acontecimentos (estou falando de você Chaleira Bowie). Entretanto, a série é extensa demais e pouco do material presente na mesma foi utilizado de maneira direta, mas podemos ver muito da localidade e fotografia do local reproduzidos na cidade de Silent Hill. Veludo Azul também dá um ótimo calço para que o jogo se desenvolva, sem se aprofundar muito no livro, mas ainda existe uma terceira obra cinemática que remete ao lado paranormal da série toda: o filme Alucinações do Passado.

Este grande clássico do terror/suspense foi uma das grandes inspirações para toda a equipe da Team Silent e para Masahiro Ito, o designer dos monstros da série. No filme, conhecemos Jacob, um homem que durante a guerra do Vietnã foi atacado por uma baioneta enquanto fugia, após ver seu batalhão ser atacado e entrar em um frenesi em que muitos se mataram ou mataram outros indiscriminadamente. Após isto, Jacob acorda em um metrô e, a partir daí, o filme se torna um sonho febril, em que vemos um universo de incertezas e alegorias para a vida e a morte tomarem forma em um mundo pervertido e deformado.

O filme traz uma visão carregada de simbolismos, alguns são pessoais e outros são propositais, mostrando o quão influente a obra pode ser por si só, ao fazer com que o espectador ultrapasse a barreira entre obra e plateia e se torne parte da história ao tirar a sua própria interpretação de algo que parece funcionar em diferentes camadas de pensamentos. Mas o que realmente liga as obras é a maneira como o mundo se comporta ao redor de Jacob.

A escada de Jacob é uma referência bíblica a Escadaria de Jacó, o caminho para o paraíso.

O filme possui quatro distintos momentos, o Vietnã, o passado longínquo, presente e inferno. As cenas do Vietnã são pequenos flashes que mostram a possível morte de Jacob, o passado longínquo mostra sua vida com sua esposa Sara e seu filho, morto após ser atropelado. No presente também vemos Jacob e sua namorada Jezebel, e ela e Sara são referências bíblicas às mulheres na vida de Abraão. Jezebel representa a parte pecaminosa da vida de Jacob, tal qual Maria retrata o lado luxurioso de James e sua apegação ao pecado carnal.

O inferno é a realidade onde vemos grandes ligações com a série Silent Hill, contando com um ambiente opressor, tomado por sujeira, sangue e pedaços de corpos espalhados pelo chão , além de criaturas e habitantes deformados e grotescamente perturbadores. Toda a estrutura deste inferno remete à estética do Outro Mundo de Silent Hill,

Muitas são as visões e diferentes interpretações sobre a mensagem que o filme tenta transmitir, mesmo assim o filme transpões facilmente a ideia de que Jacob já deixou está terra e agora vive em um plano metafísico onde é obrigado a reviver momentos traumáticos e viver novas terríveis experiências. Logo na cena do metrô podemos ver que Jacob não consegue sair da estação, todas as saídas estão trancadas por barras ou grades, forçando Jacob a seguir pelos túneis, trazendo a metáfora da “luz no fim do túnel”.

Neste momento, Jacob é quase esmagado pelo trem, carregando diversos passageiros que carregam feições fúnebres e um condutor extremamente similar a um Caronte dos tempos modernos. Constantemente Jacob é aterrorizado por visões disformes da realidade ou aparições demoníacas, como tumores ou formações protuberantes onde não deveriam existir em outras pessoas.

Monstro ou guia?

Durante o filme todo, Jacob interage entre estes momentos, se agarrando à vida passada e ao fato de não querer morrer, ainda que o filme constantemente atrele a mensagem de morte ao protagonista. Moedas podem ser vistas sempre que o filme retrata ou toca no assunto de morte, vemos elas indo em direção a pessoas que estão prestes a morrer, pessoas agem como se não vissem Jacob e ele está sempre afirmando estar vivo, seja para outros personagens ou para si mesmo.

Outro grande ponto artístico que inspirou a série Silent Hill são os twitchers, espíritos que assombram Jacob constantemente, tremendo e se remexendo de maneira sobrenatural, representando a batalha psicológica que Jacob trava com suas memórias, demônios internos e perdas. Ao invés de trazer os clássicos demônios como monstros bíblicos, Alucinações do Passado traz criaturas humanoides que impactam a visão do espectador exatamente por serem tão associáveis, inspirados fortemente pelos trabalhos de Francis Bacon, em suas obras surrealistas.

Como James, Jacob possui seu anjo da guarda humano, em um mundo cheio de aberrações. Jacob encontra conforto nas mãos de seu quiroprata, Louis, que age como guia nessa transição de planos para Jacob. Ao dizer que, no inferno, o que queima não são os pecados ou as almas das pessoas e sim aquilo que elas amaram em vida, isso é importante tanto para o filme quanto para os jogos da série, uma vez que podemos ver que os protagonistas carregam o peso daquilo que um dia amaram e não conseguiram deixar ir embora. Jacob não consegue se perdoar ou esquecer seu filho morto ou seu apego à vida, retratado por Jezebel, que inclusive surge como uma das enfermeiras que o torturam no hospital semelhante ao mundo de Silent Hill. Em contrapartida, James esconde o fato de ter assassinado sua esposa e se prende a sua luxuria e busca por prazer.

Não há mal que não termine ou noite que não acabe.

No entanto, como no final “verdadeiro” de Silent Hill 2, Jacob consegue sua redenção ao conseguir colocar de lado suas amarras, com isso ele encontra novamente seu filho, que o guia pelas escadarias do paraíso, enquanto James conquista isso ao confessar que matou sua esposa, não por pena ou por caridade, e sim porque não aguentava mais suportar a ideia de estar preso a Mary naquele estado. Ainda assim podemos ver que a ação egoísta tomou conta da mente e da alma de James Sunderland, pois mesmo estando preso àquela memória de sua mulher, em algum lugar ele ainda a amava.

Silent Hill 2 é facilmente considerado um dos maiores jogos de terror da história dos games. O jogo te analisa sem você saber e dispara diversas histórias para diferentes jogadores. Dependendo de como cada um agir, cada um recebe um final diferente, sem precisar saber que o jogo possuía tal capacidade de mover e estudar o psicológico da platéia. Como um perfeito truque de ilusionista, ficamos presos ao que assistíamos, ao invés de pensar sobre o que deveríamos estar buscando nas pequenas e escuras fendas de ideias do jogo.

O ego é uma ferramenta poderosa do ser humano, pois é capaz de nos mover através dos mais altos obstáculos e até mesmo matar Deus, mas ainda assim pode ser facilmente direcionado se for assim corretamente coordenado. O que pode ocorrer caso o jogador siga a vontade da cidade e acabe se preocupando demais com Maria, condenando James a um eterno ciclo de repetição dos eventos de Silent Hill 2, até que consiga a redenção e espie seus pecados, para assim poder ser mais um daqueles que deixam para trás as névoas de Silent Hill.