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No final de 1999 o mundo entrou em um breve estágio de pânico generalizado causado pela iminência do “bug do milênio”. O motivo de tanto temor era simples: ninguém sabia o que aconteceria com os sistemas de computador quando o século virasse. Atualmente, esse tipo de pensamento parece uma futilidade típica de uma tecnologia retrógrada, já que a humanidade se desenvolveu bastante em apenas 2 décadas. Qualquer pessoa que vivenciou tal época sabe muito bem das diferenças dos aparelhos eletrônicos atuais dos modelos antigos.

A tecnologia avança de forma exponencial, onde mudanças que antigamente demoravam anos para acontecer hoje ocorrem em questão de meses. Contudo, engana-se quem pensa que esse fenômeno é uma exclusividade dos computadores e outros aparelhos tecnológicos, já que os métodos de produção também são afetados por esse mesmo processo. 

Para exemplificar tal desenvolvimento fora do âmbito computacional, Andrew McAfee, cofundador da iniciativa de economia digital do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, mostra em seu livro “Mais por Menos” que, mesmo com um crescimento econômico e populacional, o consumo energético dos Estados Unidos diminuiu 2% na última década. Com esse número em mente, é possível concluir que houve um desenvolvimento tecnológico geral capaz de proporcionar uma eficiência nunca antes imaginada.

O ano 2000 trouxe muitas dúvidas acerca dos sistemas computacionais.

Contudo, como dito anteriormente, a evolução tecnológica é um processo que ocorre de forma exponencial, e – quando comparado a tempos remotos – pequenos progressos podem demorar uma eternidade. O sucesso da espécie humana no planeta Terra é justificado por uma série de ideias que, lentamente, reverteram quadros extremamente desfavoráveis, proporcionando crescimento e prosperidade incomparáveis aos de outros animais. De fato, tais ideias foram tão importantes que hoje, milhares de anos após o surgimento do homo sapiens, elas são encontradas como mecânicas básicas de jogos eletrônicos.

The Sims e Aristóteles

Sim, a associação entre processos antropológicos e jogos dedicados exclusivamente ao entretenimento pessoal pode parecer absurda, mas a ideia é mais simples do que parece. Não acredita nisso? Pois bem, comecemos falando de um grande clássico dos jogos de computador: a franquia The Sims.

Marcando gerações inteiras, a franquia The Sims possibilita que o jogador crie um personagem – ou “Sim”, utilizando o termo do jogo – e tome decisões referentes à vida do mesmo. O fato é que grande parte do seu gameplay gira em torno das necessidades, que são representadas através de diversas barras, cuja saciedade depende de fatores diferentes.

Quem nunca teve que fazer duras escolhas por causa dessa barra?

Um dos fundadores da filosofia ocidental, Aristóteles dedicou parte do seu trabalho a estudar os seres físicos enquanto animados. No seu tratado denominado “De Anima”, o filósofo grego especifica três tipos diferentes de alma: a vegetativa, a sensitiva e a racional. A primeira se ocupa das funções vitais – como a reprodução e outras funções biológicas –, a segunda dá origem à sensação e ao movimento, enquanto a última é responsável pelo conhecimento e a escolha. Ocupando lugar de destaque nesse modelo, o ser humano é o único ser vivo que possuiria os três tipos de alma.

Certo, mas o que isso tem a ver com The Sims? Simples: as necessidades representadas no jogo da Maxis não são nada mais nada menos que a representação da alma sensível. O animal age de acordo com as suas necessidades, que lhe são informadas através dos seus sentidos. Se um lobo sente fome, ele irá agir de acordo com a sua sensação e saciar essa necessidade. Se o mesmo lobo come algo que lhe faz mal, ele irá atribuir a sensação ruim com o alimento e, desse modo, evitar consumir o mesmo – neste caso, a experiência é uma derivação da sensação.

O homem – ou, no caso do The Sims, o jogador – é capaz de atribuir um elemento racional a essas sensações. Todos temos necessidades que precisam ser supridas, mas a racionalidade permite com que tais aspectos, que nos são passados através dos sentidos, sejam saciados de forma mais eficiente. Ao invés de sair para caçar toda vez que sentimos fome, podemos alocar nossos esforços para armazenar uma boa quantidade de comida e, por causa disso, ter nossa necessidade saciada de forma rápida toda vez que ela aparecer. Indo mais além, o ser humano é capaz de abdicar necessidades imediatas a fim de receber um benefício maior no futuro, algo impossível entre os animais dotados de alma sensível.

Para Aristóteles, o homem possuía os três tipos de alma.

Esse aspecto sensível – que, para esse artigo, foi exemplificado utilizando as mecânicas do The Sims – não permitiria alguns elementos importantes para o estabelecimento do homem como espécie dominante do planeta. Em um certo momento da história, o homem percebeu que apenas seguir o que os seus sentidos lhe dizem, utilizando apenas o que está disponível naturalmente, seria um freio importante para o seu desenvolvimento. Com efeito, os elementos da alma racional de Aristóteles são perceptíveis na transição do homem caçador-coletor para o homem agricultor.

Rimworld e Thomas Malthus

Indo adiante no processo evolutivo do homem, temos um conceito que impactou severamente a relação do ser humano com o ambiente: a lei dos rendimentos. Percebendo que apenas colher o que a natureza lhe proporciona naturalmente era insuficiente para o seu desenvolvimento, o homem começou a dominar a agricultura como forma de obter seu alimento de forma mais regular. A lei dos rendimentos diz que há sempre uma relação ideal entre dois ou mais fatores de produção, e qualquer desvio nesse padrão terá impacto direto na eficiência geral do processo.

A princípio a revolução tecnológica causada pela agricultura parece ser algo trivial, mas a sua importância não pode ser subestimada. A lei malthusiana alerta para as relações entre o tamanho da população, os avanços tecnológicos e quantidade de comida disponível, onde, sem melhorias tecnológicas, é necessária uma grande área para que tal população se desenvolva. Se tal área não está disponível, então o crescimento populacional impactará de forma negativa na eficiência geral da mesma – que, em casos mais graves, provocará a sua diminuição pela falta de recursos.

Em seu modelo, Thomas Malthus procurou entender a partir de que ponto a relação entre produção e recurso passavam a ser um problema.

A situação descrita acima é conhecida como armadilha malthusiana. Isso explica, por exemplo, a necessidade de substituir o modelo caçador-coletor por outro mais eficiente. Territórios foram tomados até que, finalmente, não houvesse para onde expandir, sendo necessário empregar métodos melhores para garantir a sobrevivência geral – o famoso “fazer mais com menos”.

Lançado em 2016, Rimworld é um jogo cuja proposta é gerenciar uma colônia de indivíduos que se encontram presos em um planeta inóspito. Para garantir o sucesso dessa colônia, o jogador deverá se atentar para, assim como em The Sims, satisfazer as necessidades básicas dos indivíduos. Contudo, em vez de fazer valer a Lei de Say e trocar o fruto do seu trabalho por itens que saciam seus desejos, em Rimworld essa comodidade do comércio é muito mais limitada. Para obter itens básicos de sobrevivência, os colonos precisam muitas vezes fazer todas as etapas de produção sozinhos.

Assim como na história da humanidade, a agricultura é essencial em Rimworld.

É nesse ponto que as ideias de Malthus e a lei dos rendimentos entram. Com uma pequena população de colonos, é possível suprir todas as suas necessidades básicas sem a utilização de técnicas mais avançadas. Ao se colher os frutos de um arbusto, por exemplo, o alimento obtido será o suficiente para manter um pequeno grupo de pessoas durante um tempo considerável. Entretanto, quando a população aumenta e as necessidades crescem, tal atividade deixa de ser eficiente, já que a necessidade de comida é muito maior do que o território pode oferecer. É nesse ponto que se faz necessário a construção de campos de agricultura.

Para obter uma maior eficiência nos processos, é necessário que cada vez mais pessoas consigam cooperar entre si. Todo jogador de Rimworld sabe que o ideal é ter uma colônia cheia de habitantes, mas que isso só é possível quando há recursos disponíveis para todos de forma sustentável – pois, caso não exista, você terá diversos problemas que, em casos mais graves, culminarão na morte de alguns membros.

Xenonauts e David Ricardo

Voltando para a história do homem, a cooperação entre indivíduos também foi parte fundamental do seu desenvolvimento. Com o tempo, as pessoas descobriram que a ajuda mútua era mais produtiva do que uma ação isolada, o que proporciona um aumento de recursos e a produtividade geral. Há vários motivos para isso, desde a realização de tarefas que só são possíveis com vários homens até as diferentes aptidões individuais, mas quero me atentar a um em especial: a escassez de tempo.

Nascido na Inglaterra, em 1772, David Ricardo foi contemporâneo de Malthus e um dos economistas mais influentes de toda a história do pensamento econômico. Em seu modelo, Ricardo buscou demonstrar a eficiência do comércio como forma de produção indireta, onde ambas as partes são beneficiadas. 

Juntando a sua teoria com o processo de cooperação descrito anteriormente, é possível explicar o porquê dos indivíduos optarem por cooperar entre si em vez de entrar em conflitos sangrentos. Imagine um adulto e uma criança de uma aldeia, onde as atividades de coleta de frutos e manejo de animais são essenciais. A criança consegue, de certo modo, coletar frutas, mas tem muita dificuldade em manejar animais. O adulto consegue realizar essas tarefas de maneira muito mais eficiente do que a criança, mas, devido à sua superioridade no manejo de animais, coletar frutas seria perda de tempo.

Se duas pessoas precisam realizar duas atividades distintas para sobreviver, mesmo que uma delas seja mais eficiente do que a outra nas duas atividades, é interessante que elas dividam o seu trabalho entre as tarefas a fim de maximizar a produtividade. Estendendo essa ideia à teoria de Ricardo, a divisão de tarefas beneficiaria até mesmo o comércio entre indivíduos de aldeias diferentes, pois, mesmo produzindo com menor eficiência, ambos terminariam com mais recursos do que caso dependessem apenas de si. 

Tal princípio pode ser observado também em Xenonauts, um jogo de estratégia em turnos onde o jogador deve comandar uma tropa especializada em combater alienígenas. Contando com diversos personagens recrutáveis, é possível especializar cada um para realizar diferentes tarefas. O ideal é que cada personagem utilize seu potencial máximo, onde sua função reflete com fidelidade as suas habilidades.

Ninguém consegue fazer tudo sozinho, então qual a maneira mais eficiente de alocar funções?

Todavia, nem sempre é possível achar personagens ideais para todas as funções, o que não implica a falta de utilidade das mesmas. Em determinado momento do jogo, você poderá obter um personagem com habilidades perfeitas para duas funções, mas só será limitado a escolher uma. Assim como o tempo, a atribuição de classes é algo escasso. Do mesmo modo que uma pessoa que passa o dia trabalhando renuncia um dia de lazer, do mesmo jeito que ao se escolher pizza para o jantar se renuncia um hambúrguer, um jogador que escolhe que tal personagem será da classe X renuncia o seu uso na classe Y. Esse é o famoso conceito de “custo de oportunidade”.

Muito além do entretenimento

Muitas pessoas subestimam o papel dos jogos, mas, como exposto no artigo, entender o seu funcionamento pode ajudar a compreender diversos aspectos da natureza humana. Por vezes representando em nível estrutural muitos elementos do cotidiano, várias de suas mecânicas são alegorias para conceitos extremamente relevantes no meio acadêmico. Toda a exemplificação foi inspirada no livro “Uma Breve História do Homem: Progresso de Declínio”, do filósofo alemão Hans-Hermann Hoppe.

Através da compreensão desses pontos, a humanidade, mesmo que sem saber, conseguiu atingir um patamar muito superior ao de qualquer espécie. Se a agricultura proporcionou mais alimentos e a cooperação entre indivíduos fez com que a produtividade geral aumentasse, esses fatores apenas mitigaram a armadilha malthusiana. A humanidade cresceria a um ponto que nem mesmo a agricultura poderia suportar tantos humanos vivos, e era necessário superar o paradigma tecnológico atingido anteriormente. A revolução industrial foi a grande responsável por essa tarefa, mas isso é assunto para um outro artigo.