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Nos últimos tempos, executivos de várias publishers falaram mal do mercado de jogos usados, dizendo que era algo comparável à pirataria. A THQ e a Electronic Arts chegaram a tomar medidas contra esse mercado, criando um código de uso único para elementos essenciais do jogo (normalmente, para permitir o jogo online). Assim, se alguém comprasse uma cópia usada, teria que comprar um novo código para poder ter acesso a essas funcionalidades ou então ficaria com uma cópia capada.

Já escrevi várias colunas aqui sobre a capacidade dos executivos das empresas de videogame para dizer e fazer burradas das mais variadas formas e tamanhos. Mas o tópico da luta das companhias para pintar os jogos usados como um mal para a indústria é algo que transcende a simples definição de “burrice”.

É impressionante como esse pessoal não sabe como o mercado funciona – e mais impressionante ainda, como eles não sabem como está montado o mercado que eles mesmos montaram. A margem de lucro que eles deixam para as lojas é mínimo, tanto que o lucro de verdade das redes especializadas como a Gamestop (EUA) e a Game (UK) está na venda de jogos usados e acessórios de marca branca. Aqui na Espanha, até mesmo uma rede de “alto nível” como a Fnac começou a vender jogos usados, porque o mercado normal não se paga.

Além disso, a coisa mais normal em qualquer lugar do mundo é você vender seu jogo velho para comprar um novo – em transações entre particulares, ou fazendo trade-ins (entrega dois-três jogos usados na loja e pega um novo). Se fossem fazer uma pesquisa de mercado, com certeza uma grandíssima parcela das vendas de software novo ia cair nessa categoria.

Mas, para as companhias, quem faz isso, quem se esforça para ter um joguinho novo, é pirata. Bela maneira de tratar seu consumidor, pessoal. Parece até aqueles vídeos de “piratear é crime” que rodam no começo de DVDs legais, que você tem que ver de qualquer maneira. Vídeos que são cuidadosamente retirados das cópias piratas de camelô. Ou seja, o comprador legal é tratado como um pirata, tem um serviço pior do que o do ilegal. Seria um exercício interessante se, digamos, a Gamestop suspendesse a compra/venda de jogos usados por um mês, só para ver a queda brutal das vendas de jogos novos…

E o pior é que não é só no mercado dos videogames e dos DVDs que os executivos vão contra seu público. Uma sentença que saiu na semana passada nos EUA pode potencialmente jogar por terra todo o mercado de cópias de segunda mão de qualquer material passível de copyright, de livros a videogames, passando por CDs e software de computador. Um usuário queria ter o direito de vender sua cópia de AutoCAD, e por isso entrou na justiça contra a Autodesk, a fabricante do software. O juiz, no entanto, deu razão à Autodesk.

Um parêntese para um pouco de análise legal, cortesia do Joystiq: a lei de copyright americana tem um preceito chamado “first-sale doctrine”. De acordo com esse preceito, o comprador de uma cópia legal de qualquer trabalho protegido contra copyright (seja um livro, um CD, um filme, o que for) tem o direito de repassar a um terceiro (de maneira temporária ou não, e envolvendo ou não uma transação monetária) essa cópia, sem ter que pedir qualquer tipo de permissão ao possuidor dos copyrights do trabalho original. Como o Mark Methenitis, autor da coluna do Joystiq, frisou muito bem, “todo o negócio da Gamestop está baseado nesse preceito” – sem contar as bibliotecas e as locadoras, por exemplo.

Muito bem. A decisão do juiz diz, de uma maneira bem clara, que o AutoCAD não foi vendido, e sim licenciado. Isso porque a licença de uso do software (sigla em inglês EULA, de End-User License Agreement) dizia isso com claridade, além de restringir inequivocamente a capacidade de transferência da licença de uso a outra pessoa.

Isso tem várias implicações. O primeiro de todos: se a EULA não permitir que você venda o seu jogo, ao fazê-lo você estará cometendo um ato contra a lei de copyright – em outras palavras, é como se você estivesse cometendo pirataria.

Também tem o fato de que, se a EULA estabelece uma “licença” em vez de uma venda, nada impede que essa licença seja temporária. Em outras palavras, você poderia ter que passar por caixa regularmente…

Além disso – e isso é o que mais assusta – pelo que a sentença dá a entender, qualquer material sujeito a copyright estaria sujeito às mesmas condições; bastaria com o detentor dos direitos estabelecer uma EULA dizendo que não permite a aplicação da “first-sale doctrine” para que isso fosse verdade. Ou seja, se o detentor dos direitos de, digamos, um livro, estabelecer uma EULA dizendo que o seu material não pode ser emprestado, aquele livro não poderia nem mesmo ser parte do acervo de uma biblioteca pública.

Obviamente, estamos falando apenas da lei e da jurisprudência americanas. A nova legislação brasileira sobre direitos autorais que está em discussão é bastante liberal para fins não-comerciais (ou seja, não seria possível criar restrições a bibliotecas, por exemplo). Mas, ainda assim, em tese nada impediria que esse tipo de licença restritiva ao direito da “first-sale doctrine” fosse implementado em outros países, incluindo o Brasil.

Temos que lembrar também que, na prática, essa limitação de direitos já ocorre com os jogos digitais que compramos. Ou existe algum meio legal de transferir a propriedade de um jogo comprado na XBLA, no Steam ou na PSN? No ambiente digital, que todo mundo acha que é fantástico, supimpa, super legal, na verdade estamos todos tomando no toba. Sim, obviamente tem seu lado bom – projetos legais como Braid ou NyxQuest nunca iam conseguir chegar ao grande público de outra forma. Mas a gente simplesmente está alegremente passando o controle às companhias, porque a gente possui algo… que não pode vender!

Sem contar os otários que passam feito cordeirinhos pelo caixa para pagar por aquela enganação chamada PSN Plus – que na prática nada mais é que um aluguel disfarçado de licenças de jogos.

E elas não param de pedir mais e mais. Vou me arrepender de dizer isso, mas tenho que torcer por uma mega-corporação para me defender de outras. Porque, enquanto as companhias dependam da Gamestop para poder vender suas coisas nos EUA, elas não sairão fora do mercado do jogo físico nem farão nada drástico contra o mercado de segunda mão. Agora, se conseguirem levar a Gamestop para o seu lado de alguma maneira, que Deus tenha piedade da gente…