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Hong Kong é um fenômeno difícil de explicar. A grosso modo, é um território autônomo que faz parte e ao mesmo tempo não faz parte da China. Em um país de dimensões continentais e governo comunista, Hong Kong é um pequeno oásis onde, sob a autorização do governo central, vive-se uma fachada capitalista. A sinalização do governo de que esse status pode ser revogado foi o estopim para uma revolta de chineses contra chineses, inflamada por paixões locais e reprimida com truculência. É melhor nem perguntar sobre Taiwan…

Entretanto, o que isso tem a ver com jogos eletrônicos? Para uma indústria bilionária que se pretende cultural e advoga o direito de ser considerada Arte com letra maiúscula, seria impossível se omitir de questões que estão mobilizando sociedades e levantando debates. Para uma indústria bilionária que tem na China um de seus maiores mercados potenciais, seria impossível não ser afetada pelo que acontece nas ruas de Hong Kong nesse momento. Para uma indústria bilionária que cada vez mais está sendo infiltrada pelo gigante capitalista chinês Tencent, é inevitável prestar atenção no movimento e suas repercussões.

Durante o torneio Grandmasters de Hearthstone, o jogador profissional Ng Wai “blitzchung” Chung, após o término de sua partida e após a conclusão da entrevista ao vivo que se seguiu, vestiu a máscara e o óculos de proteção símbolos dos manifestantes de Hong Kong (para burlar os sofisticados programas de reconhecimento facial da polícia). E foi além: clamou com todas as letras pela liberdade da cidade-estado, se posicionando ao lado do movimento.

O gesto humano de se expressar politicamente, encerrado seu compromisso profissional, foi o estopim para a produtora Blizzard removê-lo da competição, suspender o pagamento dos prêmios conquistados com suas vitórias e bani-lo por um ano do cenário competitivo de Hearthstone. Mais do que isso: os próprios entrevistadores também foram penalizados, impedidos de continuar transmitindo o Grandmasters.

A gigante ocidental alega que o código de conduta dos jogadores profissionais de Hearthstone permite que a Blizzard, baseada em sua avaliação, puna aqueles que possam causar danos à imagem da empresa, a si mesmos ou ofender uma parcela do seu público. A regra é clara, mas também é exageradamente ambígua e confere à produtora, na verdade, o poder de decidir o que é ou não ofensivo à imagem.

#BoycottBlizzard

A punição pesada de “blitzchung” gerou uma reação proporcional na internet, tanto entre jogadores quanto de desenvolvedores da Blizzard. O furor provocou o bloqueio temporário do subReddit da empresa por conta do volume e do teor das mensagens. Um movimento de boicote dos produtos da Blizzard foi iniciado e há suspeitas de que a empresa tenha desativado alguns mecanismos de cancelamento para conter o êxodo.

Independente do espectro político ou da indústria, boicotes não costumam surtir o efeito que seus participantes desejam. Apenas uma fração da comunidade de usuários se dispõe a se privar de seus produtos em favor de alguma causa. Basta se lembrar do movimento de protesto contra o fim dos servidores descentralizados de Call of Duty e de como o boicote dos jogadores afetou as vendas da franquia desde então. Sim, em nada.

Se essa ferramenta de manifestação não é das mais eficientes, ela é barulhenta e faz parte de um ecossistema que se tornou mais amplo. A revolta chegou até os escritórios da própria Blizzard: funcionários se posicionaram em frente ao prédio principal para protestar. Eles usavam guarda-chuvas, outro dos símbolos da resistência de Hong Kong, no lugar de máscaras. A adesão foi baixa, face o tamanho da força de trabalho da empresa, mas o recado foi dado para a diretoria.

Brian Kibler, streamer e frequente apresentador de partidas oficiais de Hearthstone, anunciou sua saída do cenário, até que a Blizzard apresente uma solução pacífica para a situação. Ainda que Kibler defenda que o gesto de “blitzchung” não deva ficar impune e que há lugares e momentos mais adequados para se manifestar, ele acredita que a reação da produtora foi desmedida e não foi motivada por uma violação de regras e sim por pressões externas e/ou econômicas.

São sinais de uma indignação que poderia passar despercebida para qualquer outro gigante da indústria dos jogos eletrônicos, mas que ressoa extremamente mal para a Blizzard e, ironicamente, fere sua imagem.

O mundo precisa de heróis

Imaginemos por um segundo que o banimento de “blitzchung”fosse resultado da ação de uma EA Games, cuja imagem nos últimos anos tem sido justa ou injustamente a de uma corporação gananciosa e impessoal, ou mesmo de uma Square-Enix, cuja imagem frente aos jogadores como entidade física é praticamente neutra. A repercussão certamente seria menor.

Entretanto, a Blizzard sempre foi vista com carinho por sua comunidade como uma empresa inclusiva, humanizada, dedicada aos jogadores e com produtos de qualidade inquestionável. Nem mesmo sua assimilação pela monolítica Activision conseguiu afetar essa percepção. Práticas comerciais duvidosas sempre passaram longe dos produtos da Blizzard. Na linguagem prática, ela era uma empresa com cartucho para queimar.

A atitude tomada no caso do jogador de Hearthstone está gastando essas reservas morais e também reabre os temores da influência da Tencent na Activision Blizzard. A gigante chinesa, que tem investimentos em praticamente todos os títulos populares do mercado (Free Fire, PUBG, Fortnite e vários MMOs) é dona também de cinco por cento das ações da produtora norte-americana. A força do mercado chinês e, mais especificamente, a força do governo chinês são agentes igualmente importantes nessas suspeitas.

Se tais fatores estão agindo nos bastidores, certamente não é mais possível separar política de jogos eletrônicos, como pregam os arautos de uma pretensa neutralidade. Como se tivesse sido possível em algum momento realmente isolar produtos culturais dos meios que permitem sua existência.

No outro lado da moeda, o movimento das ruas de Hong Kong se apropria de Mei, a heroína chinesa de Overwatch, para sua causa. É uma identificação espontânea, mas firme. Como um dos próprios slogans do jogo nos informa, “o mundo precisa de heróis”.

Em tempos anteriores, D.VA havia se tornado um símbolo da emancipação feminina em seu país natal, a Coreia do Sul. Estes também são sinais inequívocos de que, onde houver um ser humano, onde jogos forem populares, jogos e política andarão de mãos dadas, para o bem ou para o mal. Afinal, viver é um ato politico.