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Ultimamente, além de antecipar em uns cinco anos minha artrite nas mãos tentando conseguir cinco estrelas em todas as músicas do jogo dos Beatles, estou gastando um pouco mais a minha stylus com Scribblenauts. Apesar de todos os meus esforços, eu não ganhei o review deste jogo quando o staff do site entrou na Cúpula do Trovão para dividir os reviews até o fim do ano. Mas isso não me impede de falar alguma coisa sobre ele aqui.

Para quem não sabe, Scribblenauts é um jogo para Nintendo DS da 5th Cell (criadora de outra jóia subestimada do console, Drawn To Life) onde você resolve puzzles usando… Bem, usando praticamente qualquer coisa que você possa pensar. Você digita o objeto que você deseja usar, ele aparece na tela e você usa. Você quer matar aquele inimigo na espada? Peça uma e ataque. Quer explodir ele com uma bazuca? Vá em frente. Quer chamar o Indiana Jones pra ele resolver o problema pra você? Claro. Prefere chamar as forças do além? Tudo bem, pode escolher entre um dragão, a hidra, Cthulhu, o diabo ou mesmo Deus – e pode chamar quantos Deuses você quiser. Aliás, se quiser, pode chamar o cupido para ele atirar uma flecha no sujeito e ele virar seu amigão do peito, se preferir.

Muito legal, sem dúvida. O jogo te promete liberdade absoluta e você aceita o presente sem pestanejar. Você pode fazer o que quiser.

Mas pode mesmo?

Enquanto estava jogando, me saltou na mente uma frase do Peter David sobre os quadrinhos de super-heróis – bem, na verdade pode nem ser dele, mas eu li numa coluna dele. Os leitores de quadrinhos falam que desejam que seus super-heróis evoluam, mas, se algum super-herói passa por alguma mudança, rapidamente começam as reclamações. De acordo com David, o que os leitores desejam – e os escritores, artistas e editoras entregam com prazer – não é a mudança, é a ilusão da mudança. Você muda alguma coisa no herói, mas no fundo ele continua exatamente igual. Basta apenas passar um thinner no verniz e volta tudo ao normal.

Por isso que uma mudança como o casamento do Homem-Aranha foi polêmica, porque ela é uma mudança de verdade. Ele deixa de ser um adolescente de vinte e poucos anos e passa a ser adulto. Se matar a Mary Jane, ele vira viúvo. Se separar os dois, ele vira um divorciado. Ele nunca pode voltar a ser solteiro (a não ser que se usem truques baixos, como o que foi feito recentemente com o herói e que não falo qual foi porque não sei se isso foi publicado no Brasil).

No caso dos videogames, é a mesma coisa. Os jogadores adoram liberdade. No entanto, existem três coisas que fazem dessa liberdade algo ilusório.

Primeiro: não existe nenhuma maneira de se gerar essa liberdade absoluta. No caso de Scribblenauts: digamos que eu chame uma melancia. O que eu posso fazer com uma melancia? Posso chamar uma faca, abri-la e comê-la; dar para um personagem para que ele a coma e vire meu amigo; posso jogar na cabeça do personagem para tentar matá-lo; posso jogar no chão para que fique escorregadio e o inimigo escorregue; posso colocar uma corrente e pendurá-la no pescoço para que o inimigo comece a rir e morra de ataque cardíaco… No entanto, na prática, a única coisa que posso fazer com a melancia é pegar ela e dar para um personagem para que ele solte o que está segurando – assim como outros milhares de itens que não têm função prática, porque seria impossível implementar tal coisa em um tempo de desenvolvimento de menos do que dez anos.

A mesma coisa em outro baluarte da “liberdade absoluta nos jogos”, o sandbox de GTA IV. Você pode matar qualquer um na rua, mas você pode sair dando beijocas nas mulheres (ou nos homens, sei lá…), se pintar de palhaço, andar num pé só?

Segundo ponto: os jogadores não querem tanta liberdade – ou melhor, tendem a usá-la mal. Em Scribblenauts, você tem liberdade de usar qualquer item que o jogo lhe proporciona. Mesmo assim, você acaba tendendo a usar sempre os mesmos itens – voar com um jetpack ou pterodáctilo, bazuca pra matar monstros, dragão ou Deus pros mais fortes. E, se você se cansa de fazer isso, começa a ficar imaginando, “o que aconteceria se eu pegasse uma horda de zumbis e jogasse contra o Indiana Jones e o Van Helsing?” E pára de resolver as missões e começa a brincar. Novamente, igual a GTA: uma hora, todo mundo se cansa das missões e começa a “porralocar” pela cidade matando todo mundo, pegando prostitutas no farol e jogando num terreno baldio depois do “trabalho feito”.

Terceiro e último ponto: assim como os jogadores não querem liberdade, os desenvolvedores não querem entregá-la, mesmo quando podem – assim como não querem entregar realismo, mas isso é outra história. Vamos pensar em, digamos, Half-Life 2. O jogo é excelente, claro. Mas ele usa isso para te enganar o suficiente para você não perceber (pelo menos no momento) que você está andando por um corredor. Você TEM que andar por aquele caminho. Uma hora você abre os olhos, fica puto com essa situação e pensa: “OK, vou enganar aquele FDP daquele tripod alienígena que tem um mega-canhão modafoca e vou fazer ele atirar naquela coluna pra derrubar a casa”. Não, se os designers não querem que você destrua a casa, ela vai parecer feita de adamantium, mesmo que seja uma casa dos anos 50 de uma cidade do Leste Europeu.

No entanto, a Valve nunca te prometeu “UM MUNDO ONDE VOCÊ PODE FAZER O QUE QUISER”. Quem fez isso é a Rockstar e sua série estrela. O problema é que ela TAMPOUCO te entregou isso. Ou você pode cruzar as pontes de Liberty City e ir a Algonquin em GTA IV a qualquer momento? Não, só quando as “ameaças terroristas” deixam de ser um problema, que é convenientemente quando você chega num ponto da história onde tem que ir até aquele lado da cidade. Mesmo assim, esses problemas são relevados em troca da “liberdade para fazer o que quiser”. Eu posso sair matando todo mundo pela rua, roubar carros para sair por aí. Mas não posso cruzar uma ponte porque os desenvolvedores não querem.

Esse foi um exemplo extremo de burrice de desenho, mas a limitação do raio de ação do jogador não é um problema per se. Um jogo não tem de ser um parque de diversões sem regras nem quartel. É importante que o desenvolvedor mantenha as coisas sob controle para poder fazer o que ele deseja com o jogo – se eu estou contando uma história onde devo vingar o estupro da mocinha pelo vilão, não posso chegar em um ponto onde mataria o vilão antes dele violar a mocinha. E, se o jogador está contente em ser “levado” dessa forma, não há nenhum problema – mesmo porque as histórias não-lineares costumam ser um porre. Mas eu bem que gostaria de ver algo onde REALMENTE houvesse liberdade para se fazer o que quiser.

Mas talvez este game já exista – ou quase, já que ainda não foi lançado. É Love, de Eskil Steenberg. O jogo poderia ser classificado como um “semi-MMORPG”, já que os servidores terão um limite de 100-200 jogadores. Em Love, não existe uma história pré-determinada, apenas as ações que os personagens podem executar (que são muitas). A história será gerada de forma procedural pelo servidor, de acordo com as ações dos jogadores.

Talvez seja o mais próximo a uma liberdade total que cheguemos. Pelo menos, será mais divertido que ver uma cidade com bairros inteiros isolados do resto porque o jogo não pode permitir que você vá até ali, usando a desculpa de “ameaça terrorista” – e ainda assim esse jogo ganhou 10 de tudo quanto foi revista. Vai entender…