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ATENÇÃO: o texto a seguir contém diversos spoilers de Life is Strange e The Awesome Adventures of Captain Spirit.

Life is Strange fez sua fama ao cativar os jogadores de diversas maneiras possíveis. A DONTNOD soube criar um game que, mesmo sendo de nicho, aborda uma gama bem diversa de assuntos polêmicos e atuais, além de conseguir mesclar toda essa atmosfera real com uma temática fantasiosa e muito promissora: o fato da protagonista Max conseguir voltar no tempo e consertar suas próprias atitudes ou fatos que não se desenrolaram da melhor maneira.

Finalizei o jogo duas vezes com os dois finais possíveis e tomando escolhas diferentes. No entanto, mesmo gostando bastante de toda a experiência (com exceção do final, que acaba por invalidar todas as nossas escolhas do jogo inteiro), não foi um título que me tocou. A atmosfera universitária, com dramas adolescentes e conflitos de personalidade que todo jovem passa, foi uma das coisas que mais me chamou a atenção, mas ainda acho que deixa a desejar na carga emocional.

Apesar de muitos acharem que o efeito borboleta e a habilidade de voltar no tempo sejam o foco do game, acredito que a DONTNOD não quis trazer apenas um jogo sobre uma jovem que consegue retroceder seus atos, mas sim um drama onde você encare a mesma situação de diversas formas e que nem sempre acaba terminando do jeito que queremos, apesar de todos os nossos esforços para mudar o destino. Aquele que acredito ser o final verdadeiro do jogo (onde Max decide voltar toda sua trajetória e sacrificar Chloe para que Arcadia Bay não seja destruída) foi a prova definitiva disso, pois mesmo que ao longo de cinco episódios tomemos todas as decisões que acreditamos ser cruciais para um final feliz, nada garante que tudo acabe do jeito que desejamos.

Ainda assim, o caminho para chegarmos até ali é recheado de momentos intensos e emocionantes, abordando temas pesados como suicídio, bullying e até serial killers. Nada é implementado sem coerência e tudo é explicado de maneira que vejamos que, naquele universo, todas as coisas acontecem por um motivo. Mesmo assim, acredito que a DONTNOD tratou tudo isso de uma maneira muito superficial e por isso não consegui embarcar com tanto afinco na jornada emocional que o game propõe.

Um exemplo disso é o modo como abordaram a homossexualidade no jogo, algo que acredito que teria um impacto muito maior caso eles fizessem da Max uma garota lésbica desde o princípio, sem a possibilidade do jogador escolher esse detalhe. Podemos definir a sexualidade de Max ao escolher ficar com Chloe ou com Warren, e isso acaba tirando muito da personalidade própria da personagem e consequentemente da representatividade que a mesma poderia trazer.

Apesar de ter ficado satisfeito com o resultado final, ainda achei que o potencial foi desperdiçado, portanto não esperava por um segundo jogo – inclusive achava desnecessário. Foi assim que, na E3 deste ano, a DONTNOD anunciou um pequeno jogo que seria disponibilizado gratuitamente e serviria como um prólogo para Life is Strange 2, chamado The Awesome Adventures of Captain Spirit. O que me chamou a atenção logo de cara foi o fato do protagonista ser um garotinho de apenas 9 anos de idade, e o “superpoder” dele ser a sua imaginação em meio às suas brincadeiras.

Vi muita gente criticando essa demo pela monotonia de controlar um protagonista mirim e assumo que enrolei bastante para encará-la justamente por compartilhar desse mesmo preconceito inicialmente. Eis que, quando resolvi começar, o soco no estômago foi instantâneo: o garotinho perdeu a mãe. Essa não é a primeira nem a última vez que vemos um personagem orfão de mãe, mas poucas obras tiveram o mesmo cuidado e delicadeza de abordar o tema como a DONTNOD fez. Chris é uma criança normal que vive apenas com seu pai, um homem que ficou depressivo e se tornou alcoólatra após a morte da esposa, demonstrando comportamentos violentos por conta disso. O menino tenta manter uma certa proximidade com o pai, mas notamos que é tudo em vão, não só pelo pai recusar o carinho do filho mas também por Chris nutrir um certo medo de sua figura paterna.

God of War foi um tremendo sucesso deste ano por apresentar um Kratos mais humano mas que não deixa de ser o Deus da Guerra que tanto gostamos, ainda trazendo algumas semelhanças com Captain Spirit, como o falecimento da figura materna e a jornada de aproximação entre pai e filho que sucede. Mas aqui a coisa é bem diferente: você não parte em uma aventura matando criaturas mitológicas e entrando em batalhas épicas para jogar as cinzas de sua mãe do monte mais alto – Captain Spirit é real.

Em apenas 2 horas de jogo, a DONTNOD conseguiu superar qualquer aspecto dramático de Life is Strange. Perder a mãe não é fácil, ainda mais na infância, já que a figura materna muitas vezes representa um sinônimo de abrigo, conforto e amor incondicional. Quando jogo videogames, costumo me colocar inteiramente no papel daquele personagem que controlo e chego a me identificar com situações que nunca experienciei na vida real. Não demorei muito tempo para me enxergar na pele de Chris – afinal, basta termos uma mãe para ter alguma dimensão da dor que vem com sua perda.

Em diversos momentos, encontramos cartas e lembranças do menino que remetem à sua falecida mãe, mas o que mais me tocou foi o momento da caça ao tesouro, no qual o tesouro é uma caixa cheia de fotos em família e desenhos feitos pela mãe do menino (que era uma artista). Tudo que Chris faz está relacionado à falta que sente da mãe, e a sua imaginação fértil é uma maneira de escapar da realidade tão sofrível. Vemos algo semelhante em Papo and Yo, onde o protagonista (que também é um garotinho) mergulha em um mundo imaginário para escapar da realidade cruel em que o mesmo é agredido pelo pai alcoólatra, e tudo neste novo mundo remete a algo de sua vida.

O mais tocante na história de Chris é a sua lealdade para com o pai. Logo de início, podemos ver que o mesmo age de uma maneira bem agressiva com seu filho por conta da bebida, e ainda assim o menino se esforça em manter a casa limpa e interagir com o pai para agradá-lo – em alguns momentos trazendo à tona lembranças de sua mãe (como quando coloca a música preferida dela para tocar). Podemos encontrar diversas cartas dos avós maternos de Chris oferecendo ajuda aos dois e pedindo a guarda do menino enquanto seu pai se recompõe, e os comentários do garoto sobre as cartas são mais comoventes ainda: ele não quer abandonar o pai, pois sabe que ele também está passando por uma fase difícil e que os dois devem ficar juntos para superar essa perda.

O que coroa essa combinação é a música tema, que como o Life is Strange original traz uma faixa folk em seu centro: “Death with Dignity”, do artista Sufjan Stevens. Não existe música melhor para retratar a situação deste jogo, e isso vai além da letra, que fala do vazio que a perda da mãe pode deixar em nossa vida. O artista compôs essa música em lembrança de sua própria mãe, que lutou contra vícios e distúrbios mentais durante toda a sua vida, o que por sua vez tornou a infância do filho bem difícil. Mesmo não tendo convivido muito com ela, Stevens afirma que sua morte teve um impacto muito grande nele, sendo o que inspirou esta canção e o álbum do qual ela pertence, intitulado Carrie & Lowell (os nomes de sua mãe e padrasto, respectivamente, que também estão na capa do álbum).

https://www.youtube.com/watch?v=qEAlQOVGMec

É por isso tudo que acredito que Life is Strange 2 será incontáveis vezes superior ao primeiro. Captain Spirit chegou para provar o quanto a DONTNOD amadureceu na construção de seus personagens e de suas histórias, e aqui vemos que os temas abordados são igualmente pesados aos anteriores mas apresentados de uma maneira muito mais profunda e real. Já havíamos lidado com o sentimento de perda no primeiro, referente a Chloe e seu pai, mas o quadro agora está bem diferente: Chloe perdeu seu pai na adolescência e adotou uma postura mais rebelde como reflexo disso, já Chris é apenas um garotinho que busca o pai para combater a solidão que a perda da mãe deixou em sua vida, e por ser rejeitado acaba encontrando refúgio em sua mente.

Life is Strange 2 foi anunciado pouco tempo depois da E3, e em setembro podemos descobrir o que a DONTNOD tem guardado a sete chaves. O resultado final pode ser decepcionante, afinal a expectativa é a mãe da decepção, e nós nem sabemos se Chris será mesmo o personagem principal – no entanto, é certo que ele dará as caras e será uma grande influência para o segundo game, e espero mesmo que muitas pessoas ainda possam se identificar ou ao menos encontrarem empatia com a história deste menino.

Concluo esta coluna lembrando do quão importante é termos contato com esse tipo de conteúdo, que reforça o quanto é essencial valorizarmos as pessoas queridas enquanto as temos conosco. Chris perdeu a mãe muito jovem, assim como muitos que podem estar lendo isto – independente da idade, esse é um acontecimento que nos marca para sempre e é infelizmente inevitável. Valorize seus entes mais queridos e não omita seus sentimentos, afinal, como diz Stevens em sua música, “toda estrada leva a um fim”.