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Isso já aconteceu antes, mas as pessoas costumam se repetir, ainda que seja para reafirmar-se. Roger Ebert, um dos maiores críticos de cinema dos EUA, afirmou novamente em seu blog que “os videogames nunca poderão ser arte”. E claro, há muitos comentários sobre esse assunto em todos os lugares: “O último videogame que ele jogou foi Myst, como ele ficaria se alguém falasse que o cinema não é uma arte sem ter visto nenhum filme em vinte anos?”; “A definição de arte de Ebert é errada/caduca/qualquer coisa, EU considero os videogames como arte.”

Os mais malandrinhos, como o cara do Kotaku, fizeram até alguma referência espertinha ao filme que Ebert escreveu em 1970, Beyond The Valley of Dolls. Se a gente fosse resumir as opiniões em uma frase, seria: “Quem esse @$&/#% pensa que é???” E aí eu vou me jogar na fogueira e falar: eu concordo com Ebert. Os videogames não são arte. Desculpem, deixem-me reescrever a frase: essa coisa que todo mundo chama hoje em dia de “videogame” não é arte.

Primeiro de tudo: qual o conceito de “arte”? Está nos olhos de quem vê? Algo que choca? Algo que faz pensar? Algo que faz uma pessoa se sentir bem? Pode ser qualquer uma dessas coisas – e não me importa. Porque quando eu falo nessa frase aí de cima em “arte”, o que estou querendo dizer é o que chamam em inglês de “great art”, um dos tipos de artes definidos classicamente ou na era moderna.

De acordo com Hegel, as artes clássicas são arquitetura, escultura, pintura, música e poesia (incluindo aqui a literatura). Ricciotto Canudo, em seu manifesto “O Nascimento da Sexta Arte”, reivindicou o sexto posto para o cinema, que seria uma conciliação entre os “ritmos do espaço” (as artes plásticas: arquitetura, escultura e pintura) e os “ritmos do tempo” (música e poesia). Mais tarde fez uma pequena correção, acrescentando a dança aos seus “ritmos do tempo”, declarando o cinema a sétima arte, classificação essa que perdura até hoje.

O que podemos notar? Cada uma dessas artes tem algo completamente diferente das demais – com duas exceções, que têm por objetivo principal contar uma história: a poesia/literatura e o cinema. Notem que o teatro não é considerado uma arte independente da literatura, porque na prática uma obra de teatro é uma interpretação de uma obra literária por atores. O cinema escapa dessa mesma definição, porque não é uma simples interpretação. Como bem disse Canudo, é uma “conciliação”, em que se usam todos os demais tipos de arte para gerar algo completamente diferente.

Voltemos aos videogames. Quando alguém elogia um jogo hoje em dia, quais são os critérios? Cada um tem um, então vamos usar para nossa comparação os critérios de avaliação da IGN: apresentação, gráficos, som, jogabilidade e “lasting appeal” (se o jogo o fará jogar por muito tempo ou não). Todos os meios de comunicação avaliam jogos mais ou menos da mesma forma, e os criadores levam tudo isso em conta na hora de criar.

E isso é exatamente a mostra de como os videogames não são arte. Um filme não é mal avaliado por ter a imagem granulada ou o som entrecortado de propósito, assim como um disco de um grupo de rock não é chutado pela crítica porque o grupo optou por mixar a guitarra e a voz muito mais alto do que o resto dos instrumentos. Ninguém se atreveria a dar uma nota baixa para um livro dizendo “a história é legal, mas eu não teria vontade de pegá-lo da estante para ler de novo”. No entanto, quando alguém perde tempo avaliando gráficos, som e jogabilidade de um jogo, é exatamente isso que está fazendo. Uma obra de arte não é ruim por ser plasticamente feia, ou por ser tão chata que é insuportável à segunda vista. Mas um videogame acaba sendo classificado como ruim se isso acontece.

A apresentação é um caso a parte. Com isso, a IGN está avaliando basicamente a história. Como a gente viu bem alguns parágrafos acima, todas as artes têm objetivos diferentes, com exceção do cinema, que é uma mescla das demais artes e gera algo diferente de tudo mais. Mas, hoje em dia, se um jogo tem uma “narrativa cinematográfica”, ele já é endeusado por nerds (e críticos nerds) que vêem nisso uma segunda vinda de Cristo e a “prova definitiva” de que os videogames são arte. Não, amiguinhos, não. Como já disse uma porrada de vezes, um livro “escolha-sua-aventura” não é um jogo, continua sendo um livro. Da mesma forma, um videogame “cinematográfico” não é um videogame, é um filme interativo. É cinema. E tem que ser julgado como se fosse um filme – e em 100% das vezes esses jogos são filmes bizarramente ruins. Sim, afirmo com todas as letras: 100% das vezes. Não escapa um.

O critério que poderia ser a diferença é exatamente o que deixamos por último. A jogabilidade é a interatividade. Como lembrou muita gente naquelas respostas espertinhas pro Ebert, não podemos avaliar uma escultura pela história que ela conta, então não podemos avaliar um videogame pela história que ele conta, e sim pela maneira inovadora que essa história está sendo contada. Aí os independentes têm toda a vantagem. Braid, Passage, Today I Die, todos contam histórias e poesias de maneira interativa e criam figuras de linguagem visuais que mostram de verdade o que o meio pode chegar a ser como verdadeira arte (e é o ponto onde Ebert demonstra que ele tem a mente fechada e não é a pessoa mais indicada pra falar do assunto em pauta, mas estou divagando…).

Mas claro, isso é a minoria. E aí o meio como um todo acaba indo pelo mesmo caminho. Uma minoria não é suficiente para dar aos videogames o status de “arte”. O mainstream deve ser capaz de criar obras de arte também. Existem best-sellers, filmes de grande orçamento, discos de músicos “super-vendas” que são obras de arte de pleno direito. Mas os jogos mainstream ainda não passam do estágio de filme da “Sessão da Tarde” (os ruins, não os clássicos).