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Desta vez peguei uma análise tão interessante que me deu a oportunidade de a fazer a quatro mãos. Foi ao lado da minha noiva que joguei Detroit: Become Human. Ela também me ajudou nesse texto e consegui aproveitar esse olhar extra para tirar a prova se realmente as promessas feitas pela Quantic Dream durante a campanha de divulgação realmente foram cumpridas.

Afinal não é todo dia que conseguimos encontrar um jogo com uma história desdobrada em três personagens e que conta com a interação do jogador para ser completada; ou melhor, uma história que foi pensada de diversas maneiras e colocada à nossa disposição para ser explorada.

Vamos concordar que a premissa de narrativa não-linear – que surgiu com os meios digitais e inicialmente foi explorada em jogos de mundo aberto – só servem como pequenos núcleos lineares a serem explorados não-linearmente, ou seja, na ordem que você quiser. No entanto, aqui temos um bom exemplar do que poderia ser um conteúdo interativo e que explora muito bem os caminhos disponíveis entre dois pontos, ligando-os de maneira aleatória a partir do gameplay.

Detroit é praticamente um MindNode (software para brainstorm) pronto para você brincar a partir das suas escolhas em cada nó criado dentro da história. O único problema maior foi a escolha da desenvolvedora em trabalhar com os universos de Isaac Asimov, Phillip K. Dick e uma pitada de William Gibson, olhando para temáticas atuais e esquecendo dos importantes pilares da ficção científica.

Imagem do jogo Detroit: Become Human
A SuperInteressante de 2038 será assim, inclusive forçando você a usar o touchpad do controle

A revolta das máquinas

O que me alegrou ainda mais com esse lançamento foi ver que hoje, anos depois de muita leitura, finalmente consigo curtir algo que resgata um dos meus autores preferidos e que, por sinal, criou as leis da robótica que foram (em parte) seguidas por David Cage. Para quem não conhece, as leis são:

  1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano seja ferido;
  2. Um robô deve obedecer ordens de seres humanos, desde que estas que não entrem em conflito com a primeira lei;
  3. Um robô deve proteger a si mesmo, desde que isso não entre em conflito com a primeira ou com a segunda lei.

Foram diversos livros e contos escritos por Asimov explorando essas três condições, sempre mostrando que a criação de um ser autômato e inteligente faz com que o ser humano não esteja mais seguro. A partir dessa premissa e das diversas histórias já contadas no passado, Detroit: Become Human trabalha um lado mais humano (oi?) dessas máquinas: o sentimento e livre-arbítrio. Apostando na composição de mundo inspirada em Dick com um “quê” policial de Gibson, nada com muito cyber e muito menos punk, tudo acontece em um futuro mais pé no chão trazendo você para dentro dos personagens principais.

Você assumirá o controle de Connor, Kara e Markus, respectivamente, um detetive policial, uma babá e um cuidador de idosos. Todos eles com suas funções pré-definidas por seus programas e/ou donos, porém que servem apenas como pano de fundo para o desenvolvimento de cada um deles. E esse é o primeiro ponto positivo que esse jogo possui: a maneira como cada personagem é apresentado e é muito bem trabalhado, com sua profundidade (mesmo que trabalhada brevemente) e importância capaz de gerar grande afeição por quem está assistindo esse desenvolvimento.

Imagem do jogo Detroit: Become Human
O futuro de Detroit apresentação uma ficção não muito ilusória ou intangível

Percebia em quem jogava comigo a ânsia em acompanhar o desenrolar de cada ato para ver as atitudes ou resultados das escolhas, tudo por conta do peso que aqueles andróides possuíam em tela. Em alguns pontos o nível de interesse cresce vertiginosamente, até atingir o momento em que depende do jogador para quebrar esse êxtase e nos pegar desprevenidos nos perguntando sobre “o que fazer agora?”.

Saindo dos núcleos muito bem interpretados por Valorie Curry (Kara), Bryan Dechart (Connor) e Jesse Williams (Markus), temos a construção das temáticas desenvolvidas: e se um andróide se sentisse no direito de lutar por um espaço ao lado dos seres humanos? Essa é premissa básica de um Divergente, máquinas que agem por conta própria. Em tempos de discriminação e intolerância, Detroit: Become Human surge como uma mesa aberta para discussões, opiniões e pensamentos.

Para facilitar sua participação nesse amontoado de ideias, suas decisões são as responsáveis pelo seu futuro, ou seja, você sentirá o real significado de que “os fins justificam os meios”. Talvez o problema seja o que você vai enfrentar lá na frente, seja por desatenção ou até mesmo por abusar de certas opiniões. E aqui está um dos problemas do jogo, pois é fácil notar o que é errado ou certo dentro desse mundinho escrito e definido, dando margens muito bem delimitadas para a história e deixando claro o que é punitivo ou o que a história prefere. Afinal precisamos de um troféu de platina, caso contrário algumas escolhas poderiam ter pesos muito maiores.

Imagem do jogo Detroit: Become Human
Troque Dróide por qualquer raça ou gênero e voilà!

Fica difícil falar de um jogo que tem seu ponto forte na história sem dar nenhum detalhe, mas se pegarmos como exemplo um dos nós que ele apresenta na demo, acho que fica fácil de ilustrar tudo isso. No primeiro capítulo, comandando Connor, conhecemos um policial baleado que, caso você resolva ajudar, ele aparecerá e interferirá no futuro. Porém, se você deixá-lo sem auxílio no início do jogo talvez ele não lembre de você positivamente.

Outra questão que pode ser encarada negativamente, o que para mim não tirou o brilho de Detroit, foi ver que morte pode não ser um problema. Isso tudo acaba sendo muito escalonado com a personalidade de cada andróide, tendo Kara o lado materno, Markus o ético e Connor o racional. Tudo ao redor fará você pesar essas três características para suas decisões e, consequentemente, até mesmo Chloe, o menu inicial do jogo, responderá diferente e essa é a primeira dica de que o jogo também vai alterar como lida com você.

Eu, Robô

Ter Chloe, um menu que fala com você, é apenas um dos primeiros pontos de atenção e prova que, desde o início, veremos bastante pontos diferentes. A segunda mais impressionante, é a possibilidade de cumprirmos um capítulo e refazermos ele ao final; talvez não seja tão legal fazer isso antes de completar por inteiro o jogo, pois acredito que você perderá o fio condutor da sua própria história. Como disse antes, a morte não será um problema, talvez por serem andróides ou por conta do alto fator replay que nos permite evitar a perda de personagens ou resultados inesperados.

Imagem do jogo Detroit: Become Human
Nada como um botão para mapear todas as nossas opções nessa falsa liberdade para exploração

Eu mesmo espero ter tempo para retornar a Detroit sem me preocupar em explorar todas as possibilidades, pois basta uma simples pausa na frente da TV ou um caminho pelo parque que pode parecer o correto para você presenciar certas mudanças na sua jornada. O exemplo do MindNode, que comentei anteriormente nesse review, ganha ainda mais força quando você presenciar todos os nós e caminhos existentes dentro de um único capítulo; basta isso para aguçar a mente dos mais curiosos para retornar, tentar ver e ativar tudo.

Você também ficará impressionando com o nível de detalhes dos ambientes e a capacidade em impressionar com os modelos 3D dos personagens. Tudo parece muito vivo! Sabemos que não passa de um jogo, mas a imersão é tanta que em muitos momentos esquecemos essas barreiras e apenas conseguimos curtir como um retrato da vida real.

Um recorte do nosso mundo tratado visualmente de outra maneira, até mesmo com um dispositivo neural dos andróides para captarmos exatamente o bem-estar deles, indo de verde, passando pelo amarelo e chegando no vermelho em casos extremos, de perigo ou violência. A trilha sonora com certeza tem grande importância em meio a tudo isso, pois ela acompanhará os acontecimentos e pontuará o sentimento não dos envolvidos, mas possivelmente daquilo que você sentirá ao acompanhar tudo. Quase como uma tradução em tempo real do que você tem dentro de si, mas representado como conteúdo complementar ao jogo.

Imagem do jogo Detroit: Become Human
O famoso par de policiais para discussões sobre ética e moralidade

Engraçado perceber que tudo isso pode ter pontos fracos quando pensamos no básico: a movimentação dos personagens. A mecânica de investigar um determinado item no cenário e usar o R2 e L2 para reconstruir uma cena complementam os pontos de interação mais fluidos que a história e jogabilidade pedem.

No entanto, a falsa impressão de liberdade acabam nos levando a corredores em que são percorridos às duras custas por controles pouco precisos e, com a ajuda da câmera limitada e fixa em alguns pontos das cenas, fazem com que errar o ponto que deseja visitar ou não acertar o item a ser visitado seja frequente e pode exigir certa dose de paciência dos jogadores. A questão é que aqui o foco nunca foi jogabilidade primorosa, mas sim experiência e por esse mesmo motivo acredito na grande capacidade de conquistar o jogador pelo conjunto da obra.

E como se não bastasse para ser um jogo diferentão, inclusive dentro dos seus pares como, por exemplo, Heavy Rain, Beyond Two Souls e Until Dawn, Detroit substitui a urgência dos incidentes quick time events, antes trabalhados com certo toque de suspense, para algo mais cadenciado e, por mais que não conte uma história lenta ou morosa, consegue impressionar mais pelo resultado do que pela ação em si.

Imagem do jogo Detroit: Become Human
Essa é a melhor tela do jogo, pois a partir daqui você com certeza vai querer retornar para fazer o que deixou passar

A violência de Heavy Rain, os mistérios de Beyond e o terror de Until Dawn não são nada perto da importância de cada discussão presente nos capítulos do jogo. São quase 20h de muito conteúdo que, mesmo mais simples do que obras literárias ou até mesmo cinematográficas, conseguirão atingir um público diferente e dentro do ambiente já conhecido dos gamers. Nem sempre temos a chance de reflexões sobre temas tão atuais dentro do nosso mundinho. The Last of Us foi memorável com várias abordagens criativas sobre o nosso mundo, mas esse filme interativo com certeza saiu na frente de todos os demais exemplos que citei.

Considero essa apenas a porta de entrada para quem nunca mergulhou nesse universo repleto de criatividade, temáticas interessantes e abordagens mais sérias, sob um retrato que talvez facilite o entendimento ou participação. Comece a nadar em Detroit: Become Human e termine mergulhando em águas mais profundas com autores brilhantes que fizeram história e estão à sua disposição para continuar o que Kara, Connor e Markus fizeram aqui.

Ah! Claro que sua coleção temática pode começar aqui mesmo, com os extras disponíveis para serem conquistados em jogo: galeria de modelos 3D, trilha sonora, concept art e making of. Tudo para os que desejam ir além da revolta dos Divergentes e a luta dos humanos pela retomada do seu espaço na sociedade.

Review – Unicorn Overlord

Renato Moura Jr.Renato Moura Jr.16/03/2024