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Acordo seminu e com uma ressaca brutal num quarto sujo de uma pensão mais suja ainda. A dor de cabeça é tanta que não lembro do que fiz a noite passada. E, pior, nem quem eu sou. O quarto da pensão está uma bagunça, com garrafas de bebida espalhadas pelo chão e um gravador totalmente destruído. Será que fui eu que o quebrei? Devagar tento recolher os pedaços da minha personalidade perdida enquanto cato as roupas pelo chão. Um sapato está faltando e uma janela está estranhamente estilhaçada. Presumo que eu o joguei na rua, noite passada. Vai ter que servir só um sapato por enquanto.

Enquanto caminho pelo quarto fedendo a bebida, tento lembrar o que fiz e quem sou eu. Vou ao banheiro e olho para o espelho. Não me reconheço naquele rosto. Não parece ser eu, mas o espelho diz enfaticamente que sim, sou eu ali do outro lado. Lutando contra a ressaca, tento me acostumar com o homem refletido ali na minha frente. Por fim, aceito aquele rosto como sendo meu, ainda que não acredite muito no que veja.

O fato é que eu preciso sair e tentar encontrar o outro par do sapato que joguei pela rua. No corredor, encontro uma moça relativamente bonita fumando. Talvez ela saiba o que aconteceu na noite passada. Ela me responde que a noite toda ouviu gritos, barulhos de coisas se quebrando e luta vindos do meu quarto. Ao dizer isso, ela me chama de “oficial”. Sou um bombeiro ou um policial, pergunto a ela. Consternada, a mulher diz que eu devia ser um policial, uma vez que passei o dia anterior fazendo perguntas às pessoas por ali.

Não acredito muito no que ela diz, mas é a única pista da minha identidade. Desço para o saguão. Lá, um homem atrás de um balcão me olha desconfiado. Deve ser o gerente ou coisa assim. Melhor não falar com ele. Há um homem parado na porta para a rua. Ele me vê e vem em minha direção. Diz que será meu parceiro no caso que estava investigando. Que caso, pergunto. “Ué, o cara que apareceu morto pendurado numa árvore aqui perto”, me diz o sujeito. Afinal, sou um policial. Policiais fazem isso, não fazem? Mexo dentro dos bolsos tentando ver se encontro um distintivo ou qualquer coisa que me identifique como policial, sem sucesso. O homem parece perceber e pergunta meu nome. Qual era o meu nome? Não lembro. Por via das dúvidas, falo qualquer coisa para o sujeito.

Imagem do jogo Disco Elysium
Seu rosto também não é uma visão muito agradável para quem está de ressaca.

Um jogo sobre diálogos

As linhas acima correspondem mais ou menos ao começo de Disco Elysium. Ao contrário da maioria dos RPGs, aqui você não é um herói destinado a salvar ou destruir o mundo. Você não é nem mesmo um sujeito mediano. É só um policial bêbado lidando com uma ressaca enorme tentando solucionar um caso de assassinato. Tudo isso sem lembrar o próprio nome ou mesmo o rosto. Não é um prognóstico muito otimista para dizer a verdade.

Outra coisa que se pode dizer sobre Disco Elysium é que não há combates. Pelo menos, não combates como estamos acostumados a ver. Tudo se resolve por meio de conversas e, no meio delas, você pode até decidir dar um soco em alguém. Contudo, haverá consequências para todos os seus atos e a possibilidade de você falhar é imensa. O jogador pode até perder um pouco de vida, mas não é por combate e sim por coisas que acontecem no jogo, como ser humilhado por todo mundo por estar bêbado. Sim, passar vergonha te faz perder um pouco da barra de vida, assim como ser elogiado te cura.

Imagem do Jogo Disco Elysium
Mesmo de ressaca, seu trabalho ainda é solucionar uma morte.

Nisso tudo, está o seu parceiro, que nunca sai do seu lado e está pronto para ajudar, ou te dar uma bronca. O cara realmente leva o trabalho à sério e provavelmente acha que aquele sujeito fedorento, bêbado e meio desequilibrado não pode ficar sozinho sem causar um problema para ele mesmo e quem estiver perto.

As vozes na minha cabeça

Além de ter que lidar com uma dor de cabeça colossal, você também tem que se acostumar com as vozes na sua cabeça. Sim, vozes! Não disse que você é meio desequilibrado? Existem várias que estão agrupadas em características físicas ou psicológicas por exemplo. Você pode escolher dar ouvidos para a voz que te diz para ser mais compreensivo com as pessoas ou outra que simplesmente quer bater em todo mundo até chegar num resultado, qualquer que seja esse.

Imagem do jogo Disco Elysium
Preste atenção em que vozes você dá ouvidos. Isso moldará seu personagem.

É esse sistema que torna o jogo tão interessante. Não é sobre passar no teste de discurso para fazer o NPC dizer ou fazer o que você quer, como na maioria dos RPGs. É sobre você mesmo e seus demônios. As pessoas ao redor apenas reagem a isso, de modo bom ou ruim, e você nem sempre estará certo. Na verdade você vai se lascar na maior parte das vezes, porque não passa de um bêbado desmemoriado que ouve vozes. Entretanto, está tudo bem, porque as pessoas também não se importam muito com isso.

Aqui se encontra a beleza de Disco Elysium: não é um RPG sobre salvar o mundo e ser o grande herói ou vilão. É sobre lidar consigo mesmo num lugar em que as pessoas estão tão acostumadas com gente desajustada que você nem é uma novidade. Sim, o bairro onde tudo se passa é triste, pobre e sem esperanças. As pessoas apenas vivem cada dia e não se importam mais quando alguém fica maluco por lá. É uma coisa deprimente e fascinante ao mesmo tempo. Talvez isso tenha a ver com o fato da produtora do jogo ser lituana. O pessoal do leste europeu é meio depressivo em alguns aspectos.

Imagem do jogo Disco Elysium
É uma vizinhança pobre e sem esperança essa que você tem que investigar.

Como em todo RPG, a coisa é beeeem lenta…

Uma coisa deve se falar sobre o jogo: ele é bem lento. Porém, todos os RPGs com mais história são assim. Planescape é um exemplo que eu lembro agora Não acho que dê pra mudar isso por enquanto. Se você quer um RPG de ação é melhor pegar Skyrim e encarar dragões. Aqui você só vai enfrentar amargura, tristeza e uma dose concentrada de sociopatia.

Entretanto, se você é aquele que busca uma história densa com diálogos que valem a pena ser lidos, não apenas esperando o item no final deles, Disco Elysium é o jogo para você. Até eu, que ando meio sem saco pra jogos lentos, adorei o negócio. E, lembre-se: sempre traga um Engov.

Review – Unicorn Overlord

Renato Moura Jr.Renato Moura Jr.16/03/2024