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Lissie!

LISSIE!?

Lissie, onde está você?

Poucos jogos trazem personagens marcantes que cravam suas unhas na memória e deixam um gosto de quero mais. Draugen, superficialmente uma aventura de mistério em um vila gelada na Noruega dos anos 20, é um jogo que não queria que acabasse, com personagens que gostaria de reencontrar, em um lugar do qual não queria partir.

Eu caminho por essa rua vazia

Nos minutos iniciais do trabalho da Red Thread Games, identificamos de imediato que não estamos diante de um jogo convencional. Os gráficos esplendorosos do rio que se descortina ao nosso redor, a cidadezinha pitoresca que se aproxima, o ritmo com que o diálogo desliza como o barco sobre as águas, tudo isso nos transporta de imediato para outra realidade. Estamos chegando em Graavik, uma minúscula vila esquecida da Noruega, espremida entre os fiordes e a água. Estamos em 1923, um século nos separando da narrativa que, ainda assim, é tão contemporânea.

Draugen
Alice mandando a real nas horas mais apropriadas.

Draugen é um título maduro desenvolvido por veteranos da cena dos adventures. Seus profissionais trabalharam em The Longest Journey, vinte anos atrás, e vem trabalhando em suas continuações desde então. É um jogo de quem não precisa provar mais nada pra ninguém, de quem domina as técnicas de narrativa e está disposto a fazer um desvio de seu caminho natural e buscar novas paragens. Desta forma, Draugen é experimento, é história contada perto da lareira, é um título que te convida a conhecer seu espaço e seus personagens.

Aqui, você controla Edward, um recluso artista que escapa de seu casulo e do conforto na América para atravessar o mundo em busca do paradeiro de sua irmã Elizabeth. As pistas que ele segue o levam para Graavik, uma vila que só pode ser acessada por barco e que, assim como ele, vive isolada do resto do mundo. Entretanto, Edward jamais está sozinho: a espevitada Alice, ou Lissie, o acompanha para todos os lados, como uma guardiã indomável, uma jovem mulher muitas décadas à frente do seu tempo. Criados por Ragnar Tørnquist, a mente criativa por trás de The Longest Journey, Dreamfall, The Secret World e Dreamfall Chapters, esses dois protagonistas serão o fio condutor de toda a trama e os seres digitais mais vívidos que você verá em muitos anos.

Draugen
Postais do paraíso.

A química entre Edward e Lissie é perfeita, com diálogos espontâneos brotando a todo mundo, habilmente dublados em Inglês. É estranho escrever sobre “química” entre pessoas que não existem, mas esse é o poder de Draugen: cruzar o Vale da Estranheza sem temor, nos trazer indivíduos que poderiam ser reais, com conversas tão naturais, tão fluidas, que é impossível não parar para ouvir.

Pela primeira vez em um jogo, um personagem pediu: “olhe pra mim enquanto eu estiver falando com você”. E eu pude sentir o rubor em minha face. O nível de imersão obtido é inacreditável e vai se amplificando na medida em que a história avança.

Graavik entra em cena como um terceiro e fundamental personagem, silencioso. Vagar por seus caminhos, conhecer suas casas, sua igreja, suas histórias, é ouvir seus relatos. O próprio clima e o jogo de luz entre alvorecer e entardecer funcionam como reflexos emocionais de um lugar que precisa ser decifrado. Há melancolia, há beleza, há suspense na região e Draugen sabe do valor de sua cidade. Há pontos escondidos onde Edward simplesmente senta, relaxa, e desenha a paisagem que vê, preservando a memória da cidade e chamando o jogador para a contemplação. Draugen não é um jogo para ser corrido de ponta a ponta, mas atravessado com olhar de viajante disposto a ficar.

Draugen
A igrejinha dominando a colina.

Onde a cidade dorme

Parte do encantamento de Draugen pode ser creditado ao bom uso da Unreal Engine. Enquanto outros jogos podem optar por criaturas grotescas e efeitos espetaculares de explosão e partículas, o time da Red Thread Games brinca com o fotorrealismo trazendo uma espécie de hiper-realidade. É claro que essa Graavik parece real nos seus detalhes, texturas e polígonos, mas o toque sutil de filtros de iluminação gera uma paisagem que transpira o clima bucólico de regiões rurais. Novamente, Draugen me surpreende: é a primeira vez que vejo em um jogo o mesmo tipo de aconchego de pousadas mineiras, de chácaras de campo. Quase dá para sentir o cheiro de café, embora estejamos a um continente de distância.

O que temos então são gráficos trabalhando a favor não de um mero “eye candy”, mas também para evocar sensações. A natureza vibrante da paisagem diurna contrasta com os interiores de uma região ainda sem luz elétrica, de uma cidade onde o brilho interno se apagou. O verde é mais verde, o escuro é mais escuro.

Nesse ponto, há algo de Kona em Draugen. Em ambos os jogos, você explora um vilarejo no limiar do frio, onde seus habitantes foram vítimas de algo sinistro. Ambos compartilham o mesmo motor gráfico e o mesmo apreço pela recriação de ambientes tão humanos, mas tão vazios. Os dois títulos podem ser confundidos com “walking simulators” por jogadores desavisados, entretanto, enquanto Kona era um survival horror suave, com alguns combates e uso de itens, Draugen é um thriller psicológico resolvido na investigação e nos diálogos.

Draugen
É claro que você entra na igrejinha. E é claro que as coisas não estão como deveriam estar.

Para desvendar Draugen, o jogador precisa explorar Graavik. Não de forma obsessiva, como nos antigos adventures em que caçar pixels era a regra do desafio, mas de forma natural, orgânica, praticamente como uma pessoal real faria, sem puzzles complexos ou sem sentido. Mais do que descobrir o que aconteceu com Elizabeth, Edward está aqui para descobrir o que aconteceu com Graavik.

Enquanto exploramos, somos conduzidos com maestria pela trilha sonora assinada por Simon Poole, outro veterano da franquia Dreamfall e do soturno The Secret World. As músicas pontuam os momentos adequados do jogo e a faixa de abertura te prepara para um universo de folclore, distante no tempo e distante no espaço.

Minha sombra é a única coisa que caminha ao meu lado

No crepúsculo da Razão, folclore e mitos são mecanismos desenvolvidos para tentar explicar os mistérios do homem, da vida e da morte, do crime e da loucura. Nesse sentido, a jornada de Edward não se limita a entender Graavik e sua queda, ou lidar com o sobrenatural.

Draugen
Uma palavra riscada vale mais do que mil palavras…

Draugen investe em temas psicológicos, como solidão, negação e obsessão, entre outras reviravoltas que estão no caminho do andarilho americano. Confrontado com esse enigma, ele terá que entender mais sobre si mesmo, suas contradições, contemplar seu ceticismo inexplicável e até mesmo revisitar seu passado. As estradas da mente de Edward são tão ou mais interessantes que aquelas encontradas na vila norueguesa.

Ragnar Tørnquist entende do riscado e da tarefa à sua frente ao desenvolver o enredo. Ele inicia apresentando seus personagens, nos fazendo torcer por eles, brotar empatia. Então, vem a pancada. Um golpe aqui, outro ali e o jogo muda de maneiras que podem surpreender muitos jogadores.

Draugen
Pobre Edward…

O recurso da reviravolta é uma faca de dois gumes, porém. Por um lado, vem o choque, a sensação de perder o chão e reavaliar tudo que foi visto antes. Por outro, Draugen acaba perdendo um pouco de ritmo em sua reta final. A nova dinâmica não é tão satisfatória quanto a anterior e nos perguntamos porque as coisas não podem voltar a ser como antes. Outra guinada mais à frente e parte de nossos desejos é realizada. Ainda assim, na despedida, o jogo deixa algumas perguntas sem respostas. Foi uma experiência de tirar o fôlego, mas lamentavelmente curta, apressada até em sua conclusão.

Assim como Edward, terminamos perplexos, refletindo sobre tudo que aconteceu e avaliando o amanhã. A solidão se foi, mas até quando?

Lissie! LISSIE?!

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