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O sentimento de perda é um dos mais brutais que o ser humano conhece. A ausência. O vazio gerado. A inevitabilidade daquilo contra o qual não temos qualquer tipo de controle. Poucos são os jogos que se aventuram em explorar uma das maiores certezas da vida. Mais raros ainda são aqueles que conseguem atingir o grau de perfeição obtido por Lost Words: Beyond the Page.

Contra o sentimento de perda e outras mazelas da nossa curta mas intensa existência no planeta, existe sempre a Arte. Seu poder transformador traduz o intraduzível em pílulas que conseguimos engolir, em fragmentos de respostas capazes de consolar. O título da Sketchbook Games usa e abusa do poder da palavra escrita para, de uma forma singela, contar uma história profundamente humana e mecanicamente sublime.

Numa folha qualquer

De antemão, peço desculpas pelos subtítulos baseados em “Aquarela“, de Toquinho. A belíssima canção da MPB brinca com os desenhos no papel para nos conduzir pelas vicissitudes e alegrias da vida. Lost Words: Beyond the Page utiliza palavras no papel, não grafismos, para nos conduzir por um caminho similar e com a mesma delicadeza. Foi impossível jogar um sem a evocação da música em meus ouvidos, principalmente porque ela sempre guardou um significado muito tocante em meu coração e até hoje seja quase impossível pensar nela sem marejar os olhos. Essa é a mesma sensação provocada pelo jogo e o ato de fazer essa review é uma deliciosa, mas dolorosa demanda.

Lost Words: Beyond the Page
O dragão.

Lost Words: Beyond the Page nos coloca no papel (com trocadilho) de Lizzy, uma menina comum com uma imaginação nem mais nem menos fértil do que outras de sua idade. Em um diário, ela irá escrever suas impressões sobre sua família, os sentimentos que atravessa, seu cotidiano e os obstáculos que enfrenta para concluir sua primeira história. Em outra camada narrativa, nós também somos apresentados ao universo dessa história, essa trama dentro da trama que afeta e é afetada por eventos do mundo real. Temos então o mágico e o real dialogando constantemente, a Arte dentro da Arte traduzindo o intraduzível da vida de Lizzy, mexendo em feridas e ajudando no processo de cicatrização.

A leveza da trama e sua poesia podem ser creditadas ao talento natural de Rhianna Pratchett, filha do finado Sir Terry Pratchett. Originalmente, a trama do jogo lidaria com a questão do divórcio, porém Rhianna Pratchett trouxe para a mesa uma temática ainda mais impactante. Misturando experiências pessoais com sua habilidade para imaginar outros mundos, a autora conseguiu plantar os dois pés do jogo firmemente no chão, enquanto simultaneamente tecia uma fábula com importantes lições, que remetem a “História Sem Fim” (muito mais o livro do que a adaptação cinematográfica).

Lost Words: Beyond the Page
Hello darkness, my old friend.

Em entrevista para o IGN, Rhianna Pratchett define como funciona essa aparente dicotomia entre o real e o imaginário: “muitas pessoas pensam que a fantasia é escapismo totalmente removido; não é realmente. É como lidamos com nosso próprio mundo, como passamos a entender nosso mundo e como passamos a entender outras pessoas”. A jornada de Izzy pelas páginas de seu diário ou a jornada de sua protagonista pelo fictício reino de Estoria são mecanismos para compreender dramas pungentes e verdadeiros. Da mesma forma, Lost Words: Beyond the Page pode funcionar como muito mais do que um jogo, mas uma janela tradutora, um exercício de humanidade e uma viagem pelo interior do próprio jogador.

“É um momento único em sua vida quando você experimenta uma perda pela primeira vez e, de repente, percebe que o mundo não é perfeito e que coisas ruins acontecem. E às vezes não há nada que você possa fazer sobre isso”, afirma Rhianna Pratchett. Torna-se impossível entrar em Lost Words: Beyond the Page sem trazer algo de si mesmo para sua imersão e é impossível sair sem a sensação de que há respostas para a perda e para a impotência.

Lost Words: Beyond the Page
Corte a grama!

É fácil fazer um castelo

Dentro de todo esse contexto, é magistral como a Sketchbook Games emprega as mecânicas do jogo para aprofundar ainda mais a relação entre o jogador e a história que se propõe a contar. A princípio, a jogabilidade pode ser descrita como uma mistura de plataforma com puzzles, com desafio mínimo. O objetivo não é testar os seus limites, seus reflexos ou sua capacidade de decifrar enigmas, mas te envolver. Isso é possível ao utilizar recursos que tornam as palavras da narrativa ferramentas de superação de obstáculos e entendimento.

No mundo mágico de Estoria, a protagonista (cujo nome e aparência você escolhe, amplificando a identificação) possui um livro com encantamentos que lhe permitem interagir com o cenário. Portanto, é possível ERGUER plataformas, RECONSTRUIR o que foi destruído ou QUEIMAR o que precisa ser destruído ou aceso. Quanto mais a trama avança, mais verbos ficam disponíveis no livro.

Lost Words: Beyond the Page
Quem disse que não tem aquarela?

Nas entrelinhas do diário de Izzy, o jogador conduz um avatar pelas palavras escritas e pelos rabiscos, que tem funções dinâmicas que dependem do contexto. Compreender o que está sendo dito e compreender o que está sendo sentido tornam a jogabilidade extremamente fluida nessa parte, mesmo nos momentos em que o propósito de algo se inverte em relação ao que foi feito antes. Tais alterações são extremamente intuitivas e produzem um sorriso no rosto ou o princípio de uma lágrima.

Essa extremamente rara junção entre aquilo que se joga e aquilo se deseja passar já havia sido demonstrada anteriormente em Brothers: A Tale of Two Sons. Em um ponto crucial para a história no título de estreia do genial Josef Fares, uma função, que até então era realizada de um determinado jeito, passa a ser realizada de outro e isso tem um motivo e um impacto muito fortes no jogador. Lost Words: Beyond the Page está repleto de sequências em que isso acontece, o jogo ousa alterar a interação do jogador para passar uma mensagem, caminhando de mãos dadas com a imersão e com o enredo.

O preço que se paga por essa constante brincadeira com as palavras e o poder transformador da Arte é tornar o jogo extremamente difícil de se traduzir. Seria necessário um esforço hercúleo para se adaptar ilustrações, momentos, frases e verbos para outros idiomas, consumindo mais recursos do que a Sketchbook Games possui. A barreira idiomática, ironicamente, se torna o único defeito de uma experiência tão sublime.

Lost Words: Beyond the Page
O malaco do deserto.

Que descolorirá

Apenas por suas mecânicas interligadas e sua brilhante narrativa, Lost Words: Beyond the Page já mereceria todos os prêmios que recebeu e o reconhecimento dos jogadores. Mesmo assim, o jogo vai além e atinge a excelência também em todos os quesitos que uma obra possa ser julgada. Não por acaso, é meu primeiro dez, desde Tacoma (2017).

As ilustrações que povoam esses universos são fundamentais para cativar e o jogo entrega um resultado que enche os olhos e utiliza as cores de forma inteligente, também para reforçar os tons de uma narrativa que vai evoluindo. É poesia em forma visual, que remete aos melhores traços da literatura infantil, mas sem perder o poder de fascinar adultos. A isso, somam-se uma trilha sonora encantadora, que pontua muito bem a atmosfera dessa jornada, e uma narração carismática (que surpreende no final).

Lost Words: Beyond the Page
A luz que alumia.

Lost Words: Beyond the Page estava disponível inicialmente como um exclusivo do Stadia e, como todos que tiveram o mesmo destino, passou em brancas nuvens na época. Seu lançamento agora para outras plataformas é uma correção histórica. Esta é uma chance ímpar de mais jogadores descobrirem uma bela história, talvez uma das mais belas histórias que já vi nessa mídia, mesmo sendo dolorosa. Houve momentos em que simplesmente fechei o jogo porque me era impossível continuar.

Porém, depois da dor vem a cura. Como Rhianna Pratchett nos convida, esse jogo “no final é esperançoso, positivo, cheio de amor. E espero que as pessoas entendam isso”.

Review – Unicorn Overlord

Renato Moura Jr.Renato Moura Jr.16/03/2024