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Final de 1802, o navio mercante Obra Dinn parte de Londres para o Oriente com mais de 200 toneladas de mercadorias. Seis meses depois, ainda não havia chegado ao seu destino no Cabo da Boa Esperança e foi declarado como perdido no mar. Outubro de 1807, dia 14 para ser mais exato, o Obra Dinn derivou para um porto em Falmouth, no sudoeste da Inglaterra, a aproximadamente 400 quilômetros de Londres.

Em Return of the Obra Dinn, novo jogo de Lucas Pope, criador do simulador de burocracia Papers, Please – agora sendo lançado no Nintendo Switch -, você é um investigador de apólices de seguro do escritório londrino da Companhia das Índias Orientais. Enviado imediatamente para Falmouth, a fim de descobrir o que aconteceu e fazer um levantamento dos danos.

Lucas Pope é uma pessoa especial

Qualquer pessoa que seja capaz de construir um conjunto de narrativas interconectadas de maneira com a qual todas elas soem absolutamente naturais e realistas em situações que, para a vida habitual, seriam a epítome da burocracia, do desinteresse e de tudo o que buscamos nos afastar quando em contato com algo escapista como videojogos.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Uma bela paisagem. É só ignorar os cadáveres.

Neste momento entra em jogo alguém que provavelmente tem algum tipo de desajuste profundo em um – ou muito mais – local da mente e acaba por se encantar com esses processos que numa primeira análise fariam assistir tinta secar parecer um ótimo programa para um sábado à noite.

Pela maneira com a qual Lucas Pope desconstroi os processos mais desgraçadamente monótonos e irritantes da vida em sociedade e os reconstroi de forma consideravelmente coerente com a realidade, ele deveria abandonar o ramo dos videogames e partir para reformular a maneira com a qual os cartórios funcionam.

Este trabalho de compreender profundamente os processos corriqueiros que a maioria das pessoas só torce para acabarem o quanto antes faz de Lucas Pope um diferencial por si só em meio a um mar de experiências pretensamente inovadoras, porém só entregam mais do mesmo com uma cara um pouco diferente.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Yoga ou álcool?

Começando essa linha por Papers, Please e dando sequência em Return of the Obra Dinn, Lucas oferece exatamente aquilo que você já conhece, mas de uma maneira completamente diferente. Se é que isso faz sentido.

Eu não ouvi direito!

Em Return of the Obra Dinn, você é o investigador de apólices de seguro da Companhia das Índias Orientais responsável por descobrir o que aconteceu com o navio que deveria ter cumprido sua rota iniciada há 5 anos. Nenhum dos tripulantes está disponível para explicar os acontecimentos, então todo o seu trabalho envolve decifrar as marcas pela embarcação e ligar os pontos.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Betinho? Presente… William? Morto. Edu? Presente…

Suas ferramentas para tal são: algumas ilustrações dos tripulantes do Obra Dinn; uma listagem com os nomes, papel no barco e nacionalidade; um livro de registros que separa os acontecimentos da viagem em capítulos; e um tipo de relógio que te transporta para o momento da morte de um indivíduo.

Uma vez chegando ao Obra Dinn, você está livre para vagar por quase todos os 3 pisos do barco, o convés e dois andares abaixo. Ao encontrar uma marca de morte, seja uma mancha no chão, um corpo decomposto ou qualquer outra coisa que possa te indicar isso, somos permitidos observar o momento daquele falecimento.

Para cada uma dessas viagens no tempo, somos apresentados a um diálogo prévio. Acompanhamos quaisquer conversas que aconteceram dentre os envolvidos entre 5 a 10 segundos antes do falecimento e somos jogados para o momento exato da morte. A partir daí, temos uma liberdade razoável para vasculhar o espaço ao entorno e entender o que ocorreu.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Tem horas que uma corzinha ajudaria um pouco.

Nossa tarefa, para cada caso, é entender quem morreu, o que o matou e, nos casos aplicáveis, quem o matou. Para solucionar esse quebra-cabeças utilizamos das imagens ilustradas dos tripulantes (que não possui os nomes), da lista de nomes (que não tem ligações com as ilustrações), das observações que podemos fazer e, também, dos diálogos e as respectivas vozes envolvidas.

O primeiro ou segundo caso que nos deparamos acaba servindo como um tutorial da mecânica básica de investigação e da utilização de inferências como método essencial de encontrar os fatos que estão envolvidos nos ocorridos. A partir disso, muito rapidamente, a dificuldade escala e o trabalho de investigador se complica.

Quando estamos vendo um caso só, de forma tranquila, pacífica, calma, fica tudo ok. Mas agora, vamos trabalhar a partir da seguinte premissa: você encontra o corpo A no convés do navio e segue para observar sua morte. Caminhando pelo espaço, você consegue definir o que matou o corpo A, mas não consegue definir seu nome, nem quem é o responsável pelo assassinato. Mas, além disso, você também vê um segundo corpo, o B.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Traz uma esperança ver um título desses…

Então, vamos ver a morte do corpo B. Conseguimos ver que ele foi morto por acidente, então não temos um assassino, porém, no diálogo que direciona para sua morte, é possível que o nome citado seja o do corpo A ou de um terceiro corpo, C, que percebemos na cena da morte de B. Já está dando para perceber até onde pode chegar a confusão geral da coisa? Pois então, precisei de um caderno de apoio para fazer as anotações sobre os casos, porque o que o jogo oferece não é suficiente – vale ressaltar, propositadamente.

Todas essas anotações que fazemos dentro do jogo, vão para o livro de registros da viagem. Como encontramos os corpos pelas localidades, qualquer linearidade que se possa esperar é arremessada pela janela bem, mas BEM rápido, então só relendo o livro de registros para se segurar na história como ela foi acontecendo cronologicamente.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Basicamente um documentário sobre como tudo pode dar errado em um navio.

A grande virada da coisa é que Return of the Obra Dinn não necessariamente te responde se você acertou suas inferências logo de cara. É necessário que sejam definidos os destinos de alguns tripulantes antes que você receba respostas. Portanto, é bom confiar no seu taco!

Vocês estão prontas crianças?

A par de toda a insanidade que é conseguir organizar, ligar os pontos e definir as narrativas por trás do sumiço de 60 tripulantes, ainda precisamos lidar com outra escolha criativa interessante de Lucas Pope. A direção de arte.

A linha de design escolhida por Lucas Pope em Return of the Obra Dinn remete diretamente a jogos do início do Macintosh, seguindo uma linha de gráficos de 1 bit, ou seja, um esquema monocromático, onde o 1 do bit é uma cor e o 0 é a falta dessa cor. No caso deste jogo, respectivamente, preto e branco.

Imagem de Return of the Obra Dinn
“Justiça” “no” “mar”

Ter seguido essa linha dá ao jogo um aspecto que se assemelha a um grande jogo de Game Boy. O original, preto-e-branco mesmo – ou, em alguns casos, preto e verde. A sensação é de que estamos experienciando algo realmente de um tempo muito distante por meio de algum equipamento estupidamente antigo e experimental, digno de um retrofuturismo steampunk.

Sendo honesto, por mais interessante que seja como experimento, como referência ou qualquer outro nome desconstruidão que se queira dar, estar focado visualmente em algo com este tipo de exibição foi profundamente cansativo. Senti um cansaço mental muito maior que o habitual, acompanhado de dores de cabeça moderadas e desorientações. Vale ressaltar que tenho problemas com cinetose e, durante o desenvolvimento, Lucas Pope precisou trabalhar em diversas soluções para diminuir os problemas com motion sickness.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Cthulhu?! Até aqui tu me persegues?!

Para acompanhar todas as escolhas peculiares que acompanham Return of the Obra Dinn, temos uma parte sonora tradicional. Sons muito bem captados e muito bem utilizados acompanham as caminhadas pela embarcação, trazendo uma imersão ótima. Dentro das visões das mortes, as dublagens são estupendas, a ponto de podermos confiar nas vozes dos tripulantes para solucionar falecimentos. Isso tudo além dos outros efeitos sonoros pontuais e os recorrentes que possuem qualidade ao nível desta obra.

Outro ponto que tive problemas se refere mais especificamente ao Switch. Por mais bem trabalhado que tenha sido o esquema de controle, onde as ações são muito bem distribuídas e não existem muitas interseções entre os comandos, acredito eu que a montagem inicial de controles tenha sido pensada somente para teclados e mouses, portanto acaba ficando um pouco sofrida e cansativa em controles.

Imagem de Return of the Obra Dinn
Se eles já sabem todas as partes, precisam de mim para que mesmo?

Tendo dito tudo isso, Return of the Obra Dinn é mais uma das obras primas de Lucas Pope. Caso vocês não tenham percebido pela minha leve babação de ovo, sou fã do trabalho deste jovem e acredito que ele é digno de nota como um dos maiores nomes do design de jogos da atualidade. Claro que algumas das escolhas tomadas, na minha visão não foram necessariamente as melhores, mas nada que tire do jogo a qualidade absurda que ele possui.

Return of the Obra Dinn exige que você vivencie as experiências, exige que você pare e pense, exige que você se esforce mentalmente para solucioná-lo. Mesmo assim, pode ser que não consiga. E a vida é isso aí mesmo…

Review – Unicorn Overlord

Renato Moura Jr.Renato Moura Jr.16/03/2024