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Da empresa que recentemente anunciou mais um jogo com tendências fascistas e voltadas à repressão da população, vem o que parece ser um respiro numa direção mais saudável. Uma união social para bater de frente com um Estado dominado por corporações de cima a baixo, com requintes de crueldade e sadismo.

A Ubisoft lança o terceiro jogo da série Watch Dogs, de codinome Legion. A temática gira em torno de criar uma revolta popular em um esquema de Davi contra Golias onde a funda de Davi é um smartphone e o seu conhecimento tecnológico para convocar populares a fim de derrubar um Estado fantoche de grandes empresas. Tudo isso em um grande mapa de mundo aberto com liberdade para interagir com o que quer que cruze nosso caminho. Watch Dogs: Legion trouxe essa tal liberdade ou vai permanecer essa barra que é viver neste mundo?

O pior dos dois mundos

Desde o lançamento do primeiro grande trailer de Watch Dogs, uma sombra de expectativa e decepção permanece rondando a série, como um eterno ator mirim que todos esperamos virar uma grande estrela ou uma inesquecível tragédia. E, bom, por enquanto, a série Watch Dogs vem sendo uma decepção esquecível, o que é uma Hannah Montana infernal: o pior dos 2 mundos.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Clima de Londres clássico.

Seguindo a estupenda quebra de expectativa que foi o primeiro jogo, Watch Dogs 2 agradou uma maior parcela de público e crítica, polindo diversos aspectos que falharam na primeira instância. Porém a mancha do primeiro título foi pesada e só uma passada de Vanish não resolveu, deixando o segundo jogo a ver navios. Aqui entre nós, na encolha, achei Watch Dogs 2 tão medíocre quanto o primeiro e olha que eu tinha ainda menos expectativas.

Neste fatídico e abismal ano do nosso senhor de 2020, a Ubisoft vem tentando fingir que está tudo bem tendo enfrentado crise após crise, desde comentários infelizes sobre “o quão difícil é modelar um corpo feminino”, passando por denúncias incontáveis de abusos e assédios morais e sexuais, e fechando o bingo do “cidadão de bem”, um trailer de jogo que escancarou de vez a visão da empresa sobre movimentos sociais.

Com essa bagagem, Watch Dogs: Legion chega com uma imagem de incredulidade perante à opinião pública. A visão é de um comunicado chapa-branca feita pela equipe de relações públicas com aquele discurso que busca falar o mínimo possível usando o maior número de palavras. E essa situação é muito perceptível pela falta de profundidade da narrativa de Watch Dogs: Legion.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Ubisoft: The Game!

Sempre é bom estar diante de produtos de massa que, mesmo que sutilmente, alimentem a necessidade de uma união popular revolucionária a fim de derrubar governos autocratas focados na perpetuação de oligarquias paternalistas quando não teocracias disfarçadas, mas que no fim das contas é só sobre manter ricos sendo ricos e pobres sendo pobres.

Infelizmente, a narrativa de Watch Dogs, para por aí mesmo, tratando corporações como coisas que existem por aí, mas só algumas são ruins e isso é só culpa do CEO que é uma espécie de Elon Musk misturado com Mark Zuckerberg e Pol Pot. O famoso “vamos tirar ele, depois a gente tira o resto”, lembra desse discurso?

Uma parte disso se deve ao fato da mecânica central de Watch Dogs: Legion girar em torno do recrutamento de populares para a DedSec – a organização hacker-ativista protagonista da série – de forma procedural. Literalmente qualquer pessoa na rua pode ser recrutada, desde os moradores de rua até os próprios guardas da Albion – a empresa maligna da vez.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Gosto demais do design dos carros novos.

Esta parte é interessante e cumpre bem a promessa feita, apesar de um pouco estranha literalmente qualquer pessoa ser recrutável. Uma vez que você aborde a pessoa ela te pede um favor, aquela ajudinha clássica para que “você ajude eles a te ajudarem”. As missões são bem diferentes entre si e soam como obtenção de recursos, fora que é incrível o nível de problemas que as pessoas se meteram. Além do que, nem todas as tarefas a serem cumpridas estão nem sequer perto do conceito de legalidade, o que deixa tudo mais acinzentado.

Nós somos Legião

Cada novo par de mãos que adentra a DedSec – até porque não encontrei ninguém sem uma das mãos – traz novas características e habilidades úteis para o time. Algumas inúteis também para ser honesto. Podemos ter novos hackers, novas lutadoras, policiais particulares, agentes especiais e compradoras especiais que sempre encontram descontos. Cada um com sua habilidade única.

Os personagens também são muito diversos entre si, com um bom grau de representatividade. Por se tratar de uma cidade cosmopolita tal qual Londres, nada mais justo do que ter pessoas que aparentam ter antepassados de todos os lugares do mundo. Ou melhor, de todos os lugares os quais o Império Britânico extorquiu durante os séculos passados.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Prioridades…

Por este motivo, a história do jogo não segue exatamente algum personagem como linha-guia, focando na DedSec, na 404, na Albion, entre outras organizações. Com isso, as pessoas envolvidas acabam sendo totalmente descartáveis, podendo sair um e entrar outro e nada muda. Fica bem complicado se prender a qualquer um dos envolvidos, e até se importar com a narrativa.

Essa variedade de personagens se reflete também na variedade de equipamentos padrão de cada um, variando juntamente com as habilidades; habitualmente refletem bem o background mostrado. Apesar de ter topado com algumas pessoas que não tem muito bem uma explicação para ter um AK-47 guardado em casa.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Em que momento no futuro capacete virou opcional?

Indo de encontro a essa variedade, topamos com o combate do jogo. Fiquei espantado com a disparidade que percebi em Watch Dogs: Legion, pois nunca havia me deparado com uma quebra tão grande na diversão obtida com o combate com armas de fogo comparado com a falta de sabor em torno do combate corpo-a-corpo.

Frequentemente Watch Dogs: Legion nos motiva a manter o combate sempre no corpo-a-corpo, pois dessa forma os nossos adversários também mantém a tratativa mais simples. Claro, existem alguns casos onde o caos gerado é tamanho que alguns membros da força do Estado só puxam o berro e sentam o dedo em um, ou mais, civis.

Infelizmente o combate corpo-a-corpo é extremamente simplista, composto basicamente de apertar 3 vezes o mesmo botão ou esperar um inimigo atacar, usar a esquiva e – mais uma vez – apertar 3 vezes o mesmo botão. Exatamente igual o que acontecia nos primeiros Assassin’s Creed. E fica aqui a minha primeira crítica sobre Watch Dogs: Legion ser mais um dos esquecíveis Ubisoft: The Game.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Spider-hacker, spider-hacker!

Em compensação, quando se puxam as armas, a coisa fica muito mais legal. Apesar da mecânica extremamente básica de esconde no murinho, atira e volta para o murinho, as sensações de atirar, recarregar as armas e sentir os corpos estendidos no chão – tenha isso acontecido por meio de equipamentos letais ou não-letais – são simplesmente deliciosas. O problema é que o nível de agressividade dos inimigos é extremamente maior quando armas de fogo estão nas mãos.

A ponte de Londres caiu

O grande ponto positivo de Watch Dogs: Legion, sem dúvida alguma, é a ambientação. A cidade de Londres ligeiramente futurista se apresenta de formas encantadoras, com uma sensação de vivacidade poucas vezes vista antes, ainda mais se tratando de uma representação de uma cidade real. Foi possível sentir a energia e a vibração que é esperado de Londres. Inclusive a permanente cobertura cinza, nublada e ligeiramente – poluída – chuvosa.

A decoração da cidade divide-se entre os componentes de alta tecnologia e pontos decadentes onde o Estado abandonou a população. Bom, nada de novo no front. Em Watch Dogs: Legion essa situação é bem exacerbada, tal qual a esperada com a linha de um comecinho de cyberpunk do universo do jogo.

Imagem de Watch Dogs: Legion
HACKER(WO)MAN!!!

Outro ponto chamativo voltado para a ambientação está nos veículos. Por mais que sejam poucos modelos disponíveis, as possibilidades são bem pensadas, a maioria sendo veículos elétricos com design arrojado e bem feito. Não é frequente que veículos criados para jogos realmente pareçam com projetos-conceito de montadoras reais, e isso traz uma familiaridade muito grande com o mundo.

A parte triste disso é que a dirigibilidade não é lá muito boa, os veículos não respondem como o esperado, alguns bem mais leves, outros muito mais pesados. Poucos modelos são mais rápidos, mas mesmo assim não passam tal sensação com fidelidade. E o pior caso é a física de colisões. Dezenas de vezes já bati – tanto de carro, quanto moto ou caminhão – e o outro veículo basicamente entrou em órbita enquanto o meu nem sequer sentiu o choque, tirando toda a tensão de dirigir em alta velocidade.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Solta o Barões da Pisadinha, meu parcêro!

O que complica mais ainda é que a interação com o mapa e GPS interno de Watch Dogs: Legion é bem ruim. O rastreamento de missões só funciona entrando dentro do mapa no menu, o que deixa tudo muito lento, arrastado e tirando o prazer do andamento da coisa. Burocratizando cada nova missão faz com que deixe de soar como a experiência de viver esses personagens organicamente.

O que deveria ser o foco do jogo, hackear as coisas todas, se mantém basicamente o mesmo desde o primeiro Watch Dogs. E, mais uma vez, as únicas partes divertidas são os puzzles que envolvem utilizar um ou mais dos equipamentos para atacar pontos separados em diversas partes de uma construção a fim de liberar um objetivo enquanto nos esgueiramos escapando dos olhos intensos do Estado.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Dormi em Watch Dogs: Legion e acordei em Bloodborne?

Outro ponto que foi definitivo para a minha experiência com Watch Dogs: Legion foi a sequência de problemas enfrentados. Quando não enfrentava problemas de performance com aquelas lentidões e pequenos travamentos durante partes mais intensas do gameplay – mesmo utilizando as configurações recomendadas -, acabei também enfrentando fechamentos repentinos. Sem dar aviso, sem erros, crashes, nada. Só fechava. E lá voltava eu esperar mais uma pancada de minutos esperando para o jogo abrir de novo, carregar e me entregar de volta para onde eu estava, quando não precisava refazer missões que não tinham sido salvas.

A utilização do Ray Tracing definitivamente é um fator que muda a percepção sobre o mundo. Testamos com uma GeForce Galax RTX 2080 Super* e a sensação inicial é que o jogo é mais escuro. Porém percebemos que é o que acontece quando os elementos refletem exatamente o que deveriam e não só reflexos esbranquiçados genéricos. Acaba sendo uma boa adição, porém não salva o fato de que a modelagem dos personagens é medíocre.

Imagem de Watch Dogs: Legion
Quem autorizou colocarem um jogo de terror aqui?!

Preciso aqui ressaltar que o trabalho dos desenvolvedores do jogo é admirável. Watch Dogs: Legion é um jogo enorme, com muitos pontos de interação e cheio de componentes muito interessantes. É perceptível que a maior parte dos problemas dele gira em torno de decisões gerenciais e sobre o prazo a ser cumprido, portanto culpo muito mais a Ubisoft do que os desenvolvedores pelo resultado final.

Com isso, Watch Dogs: Legion é só mais um Ubisoft: The Game, contando com todos os clássicos elementos, basicamente mais um cupcake saindo da forma já gasta, já cansada, que foi desmanchando com o tempo, mas ainda sim sendo empurrada novamente pelo chef Ubisoft para dentro do forno que é o mercado de jogos.

* Placa de vídeo cedida por empréstimo pela Nvidia.

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