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A década de 90 foi um dos períodos mais agitados da história, seja no cenário artístico, tecnológico ou social, pois nela tudo parecia conturbado. Pouco antes da virada do milênio, um rumor começou a circular pelo mundo, chamado de Y2K, o “bug do milênio”, que deixaria a rede mundial de computadores em pane. O evento do Y2K e outros grandes acontecimentos podem ser encontrados no clássico instantâneo da Ackk Studios, YIIK: A Postmodern RPG.

Diferente de RPGs que seguem uma fórmula mais homogênea de narrativa, YIIK: A Postmodern RPG se inspira em jogos do gênero que utilizam a narrativa como chamativo, como Undertale. Trazendo temas como o advento da internet, espiritualidade, cultura pop, conflitos reais e até mesmo teologia e metafísica numa narrativa complexa e misteriosa, o game convida os jogadores a explorarem ao máximo seus temas, símbolos e segredos, situando acontecimento reais como a guerra do Golfo do México em um mundo fictício, mas não tão distante do nosso.

As estrelas parecem diferentes hoje

No ano passado eu tive meu primeiro contato com Earthbound, um dos RPGs mais influentes já concebidos. YIIK: A Postmodern RPG segue uma linha de pensamento e gameplay extremamente semelhante. Ambientado durante o fim da década de 90, o game se mostra uma verdadeira obra ao mexer com a concepção e clichês do gênero e os alterando de maneira divertida e original.

Eu não faço a minima ideia de como seria a música tema dessas tartarugas.

Nada de espadas, adagas e outras armas comumente vistas em jogos do tipo. Aqui, até mesmo a personagem que anda com uma Katana ataca com um footbag (a arma é só para enfeite mesmo). Já os inimigos são bizarramente divertidos: placas de trânsito, alienígenas, tartarugas samurais adolescentes e até representações abstratas de Deus. É um mundo colorido e cheio de vida, onde vemos adolescentes lidando com o passar do tempo e as mudanças do mundo ao seu redor.

A história começa nos apresentando Alex, que após ter se formado em artes volta para a casa de sua mãe em Franktown. Após a introdução, recebemos a missão de fazer as compras, porém a lista é roubada por um bizarro gato com bigode de Salvador Dalí. A partir desse momento, o game começa a se mostrar uma verdadeira obra de ficção extraordinária: depois de seguir o gato para dentro de um hotel abandonado, Alex passa a viajar por dimensões alternativas e a interagir com entidades interdimensionais.

Na primeira dimensão visitada, encontramos com Sammi Pack, a dona do gato ladrão Dali, porém a mesma é raptada por entidades enquanto ambos tentam deixar o local pelo elevador. As coisas não dão certo e Alex pede ajuda através de um fórum online chamado ONISM 1999. Desta forma seu amigo de infância Michael, a viajante interdimensional Vella, o protestante Rory e o casal de irmãos Claudio e Chondra ingressam a aventura.

O desaparecimento de Sammi cria diversas teorias, como no caso de Elisa Lam.

Flertando com a própria realidade do jogador, o game tem consciência de que tudo o que ocorre está sendo assistido e controlado por forças maiores. Junto da busca por Sammi, nossos amigos também buscam por um disco chamado Mystical Ultima LP Legend, um álbum musical criado por um deles, que através de uma anomalia temporal chegou às mãos de Alex.

Além dos diversos encontros com criaturas e entidades bizarras, o jogador é muitas vezes apresentado a uma terceira linha de história, onde vemos um secto observando um manequim anatomicamente correto. Esse grupo de pessoas encapuzadas – chamadas de Sábios – estuda as anomalias ocorridas no corpo, em uma sala onde podemos encontrar itens das personagens principais. Estes mesmos sábios, que muitas vezes aparecem interagindo com Alex e as outras personagens, servem como representações do ego do ser humano e as diferentes emoções que cada um carrega consigo.

Cada um dos Sábios representa uma emoção/psique de Alex e todos eles sabem que nem mesmo os heróis estão sempre corretos.

YIIK: A Postmodern RPG possui uma mecânica de combate que exige que o jogador se mantenha sempre atento ao que está ocorrendo na tela. Diferente de RPGs em que o cálculo automático dos pontos de atributos da personagem e inimigos fazem todo o trabalho, aqui cada ataque funciona através de um mini game. Cada personagem possui seu determinado desafio: alguns são fáceis e outros exigem extrema precisão. A exceção é Rory, que ao invés de atacar pode tomar a dianteira e receber o dano referente aos aliados que está protegendo.

Cada mini game possui uma contagem: quanto maior essa contagem, maior o dano, e caso falhe em completar o mesmo, o oponente irá desviar automaticamente do ataque. Algumas habilidades e magias que as personagens usam também exigem um mini game para executar uma defesa ou esquiva, no qual o jogador deve acertar o ponto de uma barra no momento exato. Até mesmo o ato de fuga de um combate exige um mini game, então é bem difícil ficar entediado com o gameplay do jogo. Ainda existe a possibilidade de desacelerar o tempo, porém isso irá drenar a barra de energia temporal e ela só enche novamente após o jogador ser atingido.

A habilidade de banir de Vella envia as criaturas para o calabouço da mente.

Após o combate, como de praxe, o jogador receberá pontos de experiência. Mas diferente do clássico sistema de níveis, aqui o jogador deve entrar no calabouço da mente, onde podemos evoluir os nossos companheiros de forma manual ao falarmos com um robô. Antes disso, porém, Alex é recebido por Marlene, um corvo que durante o início do jogo faz perguntas pertinentes à vida pessoal do jogador, nos explicando que não é necessário matar as criaturas para avançar na história, mas que é algo que concede os pontos de experiência.

Após esse diálogo, que sugere um estilo pacífico de jogo, temos acesso ao calabouço da mente, em que cada andar possui quatro portas e cada porta possui um número de pontos que podem ser direcionados a determinados atributos. Também existem portas que possuem livros no local de números, as quais ensinam habilidades para Alex e seus companheiros. Uma vez configuradas todas as portas, o jogador deve falar com Marlene usando 100 pontos de experiência para evoluir. E sempre que ganhamos acesso a um novo nível, nota-se o desprezo da ave.

O labirinto da mente também esconde diversos segredos, como a Bibliotecária, um fantoche semelhante à Sammi que manifesta sua voz através de Marlene.

Revivendo a cultura pop dos anos 90

O jogo apresenta um estilo artístico que combina perfeitamente com o tema sugerido. Sendo um RPG ambientado nos anos 90, muito da cultura da época e até mesmo da tecnologia foi recriada em YIIK: A Postmodern RPG. O desenho e ações das personagens remetem à explosão da cultura dos animes e mangás, fazendo referência ao estilo de grandes títulos como Akira, Sailor Moon e City Hunter. Também podemos ver diversas imagens provenientes da cultura pop, como discos voadores e cabeças da Ilha de Páscoa.

Essa simbiose entre a cultura americana e japonesa é retratada de maneira nostálgica e divertida, permitindo ver que os personagens tem noção de acontecimentos e fatos reais sobre o nosso mundo. Aborda-se Dragon Quest e a explosão de sucesso do mesmo, como o filme Akira foi um dos maiores passos em relação às animações nos cinemas e sobre como o cenário político e social age de maneira leviana com os problemas da população negra nos Estados Unidos.

O surrealismo é um elemento fortemente explorado no game.

Outro grande aspecto de muita importância nessa divertida “salada cultural” que é YIIK: A Postmodern RPG é sua trilha sonora. Buscando inspiração nos mais diversos temas e estilos daquela época, a trilha sonora do jogo não deixa a desejar em nenhum momento, sendo até mesmo parte da história principal do jogo. As faixas do jogo são diferenciadas e únicas, possuindo temas complexos e simples, equilibrando o balanço do jogo. Uma mistura energética entre trilhas de jogos e os estilos J-Pop, Saint Pepsi, Vaporwave e Synth.

O tema de batalha também possui diferentes estilos, sendo muito improvável que o jogador ouça duas versões seguidas a mesma versão. A música move o mundo de Alex, que tem como armas discos de vinil (LPs). Em busca do Mystical Ultima LP Legend, ele e nossos outros cinco heróis se deparam com puzzles e enigmas relacionados ao mundo da música. O jogo também oferece ferramentas ao jogador, como amplificadores explosivos, skates, pandas guerreiros e jogadas de cabelo que podem cortar árvores. Cláudio, Chondra e Vella também estão fortemente ligados ao tema musical, tendo em vista que Claudio é dono da loja aonde compramos os vinis de Alex. Chondra está sempre ouvindo seu toca-fitas e Vella utiliza um Keytar (aquele teclado estiloso em forma de guitarra).

Os Soul Survivors podem facilmente alterar a realidade e agir como deuses.

Nem tudo é perfeito em YIIK: A Postmodern RPG. Pelo fato da história ser complexa e abordar diversos temas além do bug do milênio, o jogo acaba se perdendo em suas próprias ideias. As janelas de texto também são um tanto lentas, o que pode fazer com que o jogador fique preso no famoso “loop do Centro Pokémon”, onde ao apertar o botão mais rápido do que a janela, muitas vezes o diálogo se repete por uma ou duas vezes.

Outro grande problema é a barra de slowmotion, que apenas enche quando o jogador recebe golpes dos oponentes, o que torna complicado depender demais dessa habilidade.

As pessoas sentem a influência das entidades, mas não notam sua presença.

Este é um grande jogo de RPG, feito com dedicação, carinho, de fã para fã. Um game que explora diversos temas que se comunicam com os mais variados grupos de jogadores, mexendo com questões pessoais e familiares. Abordando depressão, racismo, suicídio, egoísmo, inveja e espiritualidade, o jogo cria um universo fantástico que consegue conversar com o jogador que busca entender melhor o mundo.

Certamente há muitos RPGs incríveis por aí, mas quando a narrativa de um game quebra a quarta parede e se comunica diretamente com o jogador, é impossível não ficar surpreso com o resultado. Undertale conseguiu tal façanha e agora foi a vez de YIIK: A Postmodern RPG, uma obra que vai agradar fãs do gênero, fãs da série Earthbound e até mesmo hipsters que apenas querem um jogo que os faça se sentir representados.

Review – Unicorn Overlord

Renato Moura Jr.Renato Moura Jr.16/03/2024